(Estande da CONAPE 2018, Expominas, BH, MG –
Foto: Eugênio Magno)
Aos mestres e mestras, com carinho:
NÃO SE DEIXEM ENGANAR
Eugênio Magno
Na véspera das comemorações do Dia dos/as Professores/as, andando pela rua, dei de cara com um jornal, em uma banca, que estampava na primeira página a seguinte manchete: “Só dois em cada cem professores têm mestrado”.
Acostumado aos constantes achincalhes, dirigidos aos professores, me flagrei fazendo todo o tipo de ilação sobre aquela declaração, mesmo sem a ter lido na íntegra. Não houve tempo para que eu lesse a chamada completa. Fiquei indignado e prometi a mim mesmo que iria apurar a notícia. Queria compreender do que se tratava, ainda que fosse para constatar uma triste e irrefutável realidade. Os transeuntes certamente ficaram com a degradante impressão de que 98% dos professores são desqualificados e ponto. As consequências dessa impressão? Por falta de reflexões fundamentadas e criteriosas, chega-se a conclusões apequenadas do tipo “quem não tem qualificação não merece melhores salários”, “a educação pública não presta”. E a recorrente defesa da privatização do ensino e a aposta nas escolas cívico-militares como panaceia para os problemas educacionais dentre outros de ordem geral.
No dia seguinte, ao lembrar-me da notícia que tanto havia me perturbado, fui à caça do jornal para checar a matéria. Recordei minha indignação e me autocensurei pela precipitação do julgamento. Torci para que estivesse enganado. Era o Dia das Professoras e dos Professores e ponderei que talvez não tivesse enxergado bem a manchete. Conjecturei ser impossível que, de véspera, as aves de mau agouro já estivessem grasnando contra a nossa permanentemente difamada profissão. Ponderei sobre o número de profissionais das mais variadas áreas que exercem o magistério, em razão da enorme demanda por educação e do crescente déficit educacional do Brasil. Pensei também nos profissionais para os quais basta o bacharelado para que sejam tratados como doutores e, ao consultar o Conselho Federal de Medicina, me dei conta de que 93,2% dos médicos brasileiros não possuem doutorado. Continuei com as indagações: ...mas o professor não é tratado como mestre? O sinônimo de professor em vários dicionários é mestre e os bacharéis, médicos e advogados, mesmo sem nenhuma licenciatura, têm status de “doutores”. Coisas do império...
No intervalo desta escrita, visitando as redes sociais, uma postagem no Facebook interpelou-me: a fotografia de uma sala de aula improvisada, em uma barraca de zinco e chão arenoso, onde um homem negro, calçando sandálias de dedo, escreve na lousa, enquanto uma única criança, também negra e nua é vista de costas, sentada em um tosco banco escolar. O título da postagem: “Professor é professor”. O post teve muitas curtidas, joinhas coraçõezinhos e nos comentários frases do tipo “é o amor”, “coisa mais linda”, “bravo”, etc. Segui com a minha reflexão sobre o quanto essa ideia romantizada do professor herói, vocacionado, que tem a profissão como sacerdócio, está introjetada em nós e é reproduzida ad nauseam pelos governantes, pela imprensa e o que é pior, por nós professores, tanto no espaço escolar, quanto nas relações extraclasse. Deixei um comentário no post: É bonito, mas é terrível! Até quando a educação tem que ser um ato de heroísmo e abnegação por parte de educadores e educandos? Quando os agentes educacionais serão tratados como gente, como humanos e a dignidade do processo ensino-aprendizagem (que inclui condições de trabalho, possibilidades de formação de excelência, bons salários e renda para alunos e professores, dentre otras cositas más) serão defendidos radicalmente? A minha amiga, professora e conterrânea, autora do post, concordou. Outros internautas também manifestaram, dando apoio à reflexão.
Mas enfim, ao acessar o jornal, observei que não estava equivocado. A chamada de capa para o setor Educação informava em letras pequenas: “Na rede pública no Estado, nem 0,2% é doutor”, acompanhada do título, cujas letras eram as maiores entre todas as demais manchetes do dia: “Só dois em cada cem professores têm mestrado” e, na sequência, em letras com corpo menor, um subtítulo declaratório: “Remuneração desestimula qualificação, afirma sindicato”, seguido de um pequeno texto que chama para a matéria: “Apenas 1.224 (2% dos 59.153 professores das escolas estaduais mineiras têm mestrado e 74 (0,12%), doutorado.” Ao ler a tal notícia na página interna do jornal me surpreendi com a ambiguidade do conteúdo, no estilo bate e assopra. A matéria rasa e pouco analítica, quantitativamente era grande (de uma página, com direito a várias fotos), mas ia pouco além da reprodução de trechos de entrevistas realizadas com uma sindicalista, duas professoras e um professor da Educação Básica. Os professores foram tratados como “heróis” e adjetivados de “gabaritados”, em razão de possuírem mestrado, de o professor ter cumprido inclusive estágio pós-doutoral e de uma das professoras está se preparando para o doutoramento. Não deixa de ser louvável a qualificação dos professores ouvidos e o amor que eles declaram ter pelo ofício é notório. Todavia, essa não é a questão, a matéria é superficial, não dá conta, por exemplo, da quantidade de mestres e doutores existentes na rede privada de ensino, em Minas Gerais, para que se pudesse estabelecer um comparativo justo. Sequer toca na quantidade de mão de obra altamente qualificada (mestres e doutores) desempregada ou subempregada em Minas e no Brasil, país que tanto desprestigia a escola pública e a carreira de professor e, cujas lideranças, demagogicamente, usam a narrativa de reputar a educação como solução para todos os males. Vale salientar que os últimos concursos para professor universitário não têm dado menos do que cinquenta candidatos por vaga, em média. Alguns concursos chegam a ter cem professores na disputa por uma única vaga. Mas nossas autoridades e setores das classes dominantes desse país estão de costas para a pesquisa, a ciência e a tecnologia, as artes, a cultura e para o que Paulo Freire chamou de professor-pesquisador. O que está em voga hoje no país são credenciais como a toga, a patente militar, o porte de arma, a militância neopentecostal e, claro, títulos e ações de investimentos, não a qualificação acadêmica. Em nenhum momento a reportagem questiona o oportunismo de grande parte do empresariado e dos homens públicos brasileiros – da direita à esquerda –, que usam a educação como adágio de seus projetos mercantis, populistas e eleitoreiros, entre outras políticas de dependência e condicionalidades.
Estupefato com a perversidade do estilo jornalístico adotado, logo confirmei minhas suspeitas do dia anterior: a maldade da manchete que chamava a atenção para uma realidade não considerada em seu conjunto, tratando-a de maneira aligeirada, sem nenhuma análise filosófica, sociológica e/ou econômica e cultural que pudesse explicar ou justificar a notícia. Excetuando a boa intenção dos entrevistados, o que pude observar foi mais uma manifestação do jornalismo convenientemente declaratório que tem sido adotado por grande parte dos veículos de comunicação na atualidade. Até a fala da representante de um dos sindicatos da categoria foi citada de forma a corroborar com a malfadada tese da reportagem em questão.
Diante do quadro apresentado me vi às voltas com uma dúvida e um suposto. A dúvida, a seguinte: qual era a notícia afinal? A matéria começa bem, informando que segundo estudos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a educação básica tem melhores resultados e a média de notas dos alunos é maior em países que investem na formação continuada dos professores, como é o caso de nações da Ásia e da Europa. Depois o texto descamba, sem rumo e sem prumo. Ao confrontar dados, sujeitos, elementos e fatos, presentes na própria notícia, o suposto é de que o jornal tinha material para uma excelente reportagem, mas perdeu a oportunidade de fazê-la. Infelizmente, o complexo de vira-lata venceu e a escolha foi pela canhestra imprecisão.
Este texto também foi publicado no jornal Pensar a Educação, Pensar o Brasil.