Sexta-Feira Santa. Paixão do Senhor
Qual é o poder deste crucificado? A atração irresistível da Verdade! Verdade que não vem juntar-se a “verdades”, ao que já existe no homem, mas que desvela o que nele, embora oculto, é capaz de torná-lo plenamente humano: o amor, pois amor e verdade se casam. Onipotência de um amor poderoso o bastante para renunciar ao poder e, amorosamente, ir ao encontro da fraqueza.
A reflexão é de Marcel Domergue, sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras bíblicas da Sexta-Feira Santa (29 de março de 2013: 1ª leitura: Is 52,13-53,12; Salmo: Sl 30; 2ª leitura: Hb 4,14-16.5,7-9; Evangelho: Jo 18,1 a 19,42), com tradução de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
“Eis o homem”
A ninguém passam despercebidas as semelhanças que existem entre a profecia do Servo (1ª leitura) e os relatos da Paixão. Os evangelistas tinham, com certeza, Isaías em mente, ao redigirem o texto. Tem-se a impressão de que Jesus segue um modelo pré-fabricado. Os exegetas se perguntam quem seria este Servo sofredor de Is 52-53. Seria Davi perseguido por Saul? Ou Jeremias, o profeta perseguido? Ou o povo de Israel, hostilizado pelos pagãos? É forçoso responder: são estes e muitos outros mais, ou seja, todos os que foram, são e serão um dia levados a bradar “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Jesus assume as dores e angústias de todos os perseguidos da história, de todos os que sofreram, sofrem e sofrerão por não importa qual motivo. “Eis o homem”, diz Pilatos: eis o homem todo e todos os homens! Em Isaías, à vista do estado miserável a que foi reduzido o Servo sofredor, as testemunhas o tomam primeiramente por um pecador castigado por Deus, um “leproso” a ser evitado. Mas, bruscamente (Is 53,4), elas se voltam em outra direção: o que ali vemos, somos nós mesmos! Este homem é a revelação do nosso mal, da nossa desgraça conhecida ou ignorada. Ele carrega o pecado do mundo e forçoso é voltarmos nosso olhar para aquele que trespassamos. Nele se manifestam todas as dimensões de nossa sempre disfarçada perversidade bem como “a largura, a altura e a profundidade do amor” de um Deus que quis ser até este extremo Emanuel, o “Deus-conosco”.
Falência da justiça
A Paixão é um processo. A Bíblia está cheia de alusões ao processo que Deus move contra os homens: é o tema do julgamento. Aqui, porém, assistimos ao processo que os homens movem contra Deus. Aliás, um duplo processo: dos judeus (que O conhecem) e dos pagãos (que não sabem onde se encontra a verdade). Os dois inimigos, que materializam na Escritura o imemorial conflito entre homem e homem, participam agora da condenação à morte do Justo. Primeira conivência, primeiro acordo, compartilhamento perverso na injustiça. Esta primeira cumplicidade reverterá depois, tornando-se aliança no amor entre judeus e não judeus, por obra do Espírito que Jesus “emite” no momento mesmo de sua morte: “paredoken to pneuma” (Jo 19,30). Mas, antes disso, eis que a justiça é escarnecida pelos homens! Jesus prossegue em seu caminho... Renuncia também Ele à justiça: os culpados não serão punidos, mas salvos. Tudo é subvertido pela Paixão de Cristo. E nós ficamos definitivamente isentos do regime da justiça, em virtude da qual poderíamos ser condenados. A Paixão é sentença de absolvição para todos os pecadores!
Da justiça ao amor
Não é possível inventariar tudo o que nos revela a Paixão segundo S. João. No seio mesmo de sua humilhação, Jesus é nela Mestre e Senhor: no Jardim das Oliveiras, os guardas caem por terra ante a revelação de sua identidade (18,6); Ele não julga diretamente o guarda que o esbofeteia, mas convida-o a julgar-se a si próprio (18,23); avalia, pelo contrário, a falta de Pilatos, comparando-a à "de quem o entregou" (19,11). Eis como é exercido o julgamento cujo veredito é sempre de perdão: não se trata de ignorar a culpa, mas, sim, de absolvê-la! Desviar os olhos do que foi trespassado é passar ao largo do perdão. Jesus é Senhor e até mesmo Rei (18,23-38). Ora, todo Rei exerce o poder. Qual é o poder deste crucificado? A atração irresistível da Verdade! Verdade que não vem juntar-se a “verdades”, ao que já existe no homem, mas que desvela o que nele, embora oculto, é capaz de torná-lo plenamente humano: o amor, pois amor e verdade se casam. Onipotência de um amor poderoso o bastante para renunciar ao poder e, amorosamente, ir ao encontro da fraqueza. Retornamos assim ao início do relato de S. João: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (13,1).
(Fonte: Site do Instituto Humanitas Unisinos - IHU)