Bukharin em 37, Moscou: a democracia em 2016, Curitiba
Tarso Genro*
Foto: Ramiro Furquim - Sul 21
Norberto Bobbio, nos “Direitos e Deveres da República”, fala do papel preponderante que o dinheiro assumiu na vida política e mostra que, no regime dos Médici na Florença do Século XV, aquela família não alterou a fachada das instituições republicanas, mas, graças ao dinheiro distribuía favores e fazia amizades, que gestavam os consensos para o exercício da sua dominação política, mesmo sem alterar, formalmente, as regras de exercício do poder. Mais adiante, mostra Bobbio, uma só pessoa na Itália de hoje pode conseguir apoios pelos mesmos meios e, graças à mídia, pode exercer um forte poder ideológico, com severas consequências negativas no jogo democrático. Dinheiro e poder da burocracia alimentam um ao outro, de tal forma que podem neutralizar os sinais da soberania popular, pois – como também ensinava Bobbio – nenhum Estado real se sustenta na virtude dos seus cidadãos, mas nas regras que organizam as suas lutas pelo poder e as lutas pela sobrevivência.
Integro aquela parte da sociedade e a “parte” dos próprios partidos, que entende que os inquéritos e processos, que visem atacar a corrupção e responsabilizar indivíduos dentro da legalidade do Estado de Direito, devem ser saudados e apoiados. E integro, igualmente, a parte da sociedade que entende que a cidadania deve estar atenta, para combater as deformações das ações do Estado, pelo uso manipulatório dos processos judiciais, seja pelos meios de comunicação oligopolizados, seja por facções de partidos ou de empresas, que escondem suas próprias mazelas, promovendo campanhas falsamente moralizadoras, para prover seus propósitos políticos e interesses econômicos. Qualquer Estado – de legalidade “socialista” ou “capitalista”- tem espaços para flexibilizar, um maior (ou menor) grau de autoritarismo, na sua função de “estado-polícia” e “estado-sancionador”: o que a sua Constituição aponta que está “fora”, ou “dentro” da sua legalidade, é sempre passível de ser maleado pelas contingências da política e da economia.
Um exemplo clássico desta manipulação – neste momento em que são investigados os líderes dos principais partidos do país – é “misturar”, na informação, as propinas e os financiamentos de “Caixa 2”, com as contribuições legais das empresas aos partidos. Esta “mistura” ajuda os verdadeiros criminosos a se safarem dos processos e desconstitui os processos – enquanto processos penais – transformando-os em meros instrumentos do debate político. Outro exemplo é a consideração das delações premiadas como “meios absolutos” de prova, pois os principais criminosos sempre dirão o que for necessário dizer, para se safarem das penas que lhes esperam, se não “colaborarem” com o Ministério Público. A divulgação destas delações – sem critérios legais – agride o princípio da ampla defesa e pode, mais tarde, anular os processos e beneficiar massivamente, tanto os que não cometeram delitos e foram denunciados levianamente (o que é bom), como os que cometeram crimes contra o Estado (o que é péssimo), assim enfraquecendo a capacidade punitiva do Estado.
Mas o exemplo mais brutal da perversão do Estado de Direito, no âmbito penal, são os vazamentos seletivos. Os vazamentos seletivos transformam a autonomia dos órgãos de Estado, como a Polícia e o Ministério Público (independentemente da vontade dos seus chefes), em soberania privada: soberania interna aos Poderes Soberanos. Os vazamentos seletivos internalizam, cotidianamente, na máquina estatal, a luta de partidos, que se dá na Sociedade Civil, já que aquelas instituições passam a ser espaços onde os estamentos confrontam. Se eu seleciono de maneira arbitrária, por exemplo, vazar uma informação que pode prejudicar Lula, ou Aécio, ou Marina, colocando-os na defensiva – num determinado tema que está sendo investigando – estou tratando-os de forma desigual, em relação a outras pessoas que não tiveram seus nomes “vazados”, estimulando a plutocracia a promover ações políticas que estão fora do seu dever constitucional. O próximo passo é ela apresentar-se como portadora de um messianismo de “salvação da República”, com o estupro da neutralidade formal do Estado. As publicações seletivas de informação caracterizaram a imprensa soviética e a imprensa nazista, nos períodos dos seus grandes processos administrativos e judiciais, de natureza política, assim partidarizando a Polícia e o Poder Judiciário de forma plena.
O resultado, aqui no Brasil, num processo que não é idêntico, mas análogo – dentro da democracia política – foi o afastamento de uma Presidenta sem crime e a assunção ao poder de uma Confederação de Investigados e Denunciados, promovida pelo oligopólio da mídia, articulado com a direita política, setores do Ministério Público e dos Juízes, sobre os quais o Estado de Direito “perdeu o controle”.
A “perda do controle”, quer dizer – no caso – que alguns agentes públicos movem-se com desembaraço “fora da legalidade”, não que eles devam ser “controlados” para descumprir as suas funções “dentro da legalidade”. O exemplo mais flagrante desta deformação do Estado de Direito, foi a gravação e a divulgação seletiva, pelo Juiz Moro, da conversa entre a Presidente Dilma e o ex-Presidente Lula, vazamento este celebrado nas ruas com consignas como “Cunha nos representa” e “Sonegação de impostos é legítima defesa”. São os mesmos que agora veem as suas lideranças atingidas por novas delações premiadas, já tidas como “provas absolutas”, pelo campo político que lhe é adverso. A internalização irracional da política, na plutocracia estatal, leva à irracionalidade da política na Sociedade Civil. Perdem a Democracia e o Estado de Direito, já que estas ações do Estado enfraquecem o que nos resta de senso comum republicano.
Cada tipo de Estado tem as suas formas de exercer o poder e as suas formas de aceitar violações da sua legalidade, mantendo a aparência de respeito aos fundamentos das sua Constituição. Trata-se de uma questão que não está relacionada com a estrutura econômica da sociedade em questão, mas vincula-se aos modos através dos quais, no Estado Moderno, os grupos que detém o poder obtém sucesso, nos seus objetivos nem sempre coerentes com o espírito da sua constituição. Por exemplo, a Constituição de 36, na URSS, não admitia a tortura, bem como a Constituição de 88, no Brasil, não admitia o início do cumprimento de uma pena sem seu trânsito em julgado. Em ambas as hipóteses, todavia, isso foi violado pela coerência de uma burocracia, responsável pelo funcionamento geral do sistema.
No X Congresso do PCUS (1921), o herege tido como “liberal” Bukharin, involuntariamente começou a preparar as condições de inimizade que no futuro iriam lhe levar à condenação à morte, pela Justiça Soviética. É um episódio muito ilustrativo da burocratização da política, que pode ocorrer em qualquer Estado, independentemente de suas formas de legalidade.
Dizia Bukharin em 1921, com flagrante ironia, para atacar os novos gestores-burocratas do Estado Soviético, originários do Partido, que já começara a ressecar a sua capacidade criativa: “A história da humanidade se divide em três períodos -o matriarcado, o patriarcado e o secretariado”. Lá em março de 1937, quando o aparato estatal soviético já é composto por milhões de burocratas, enquadrados pelo stalinismo (em que pese o presumido Estado de Direito Socialista da Constituição de 1936) Bukharin está respondendo ao Procurador Vishinsky, por suas (inventadas) “atividades de espionagem” e ações “anti-soviéticas”. Era o final dos processos judiciais de natureza politica, que assassinaram toda a velha guarda bolchevique, organizados pelo poder burocrático do “secretariado” no Estado, que tinha no seu centro o “Guia Genial dos Povos”.
Entre 5 e 7 de março, resistindo à fúria condenatória do Procurador Vishinsky, Bukhárin não só mostra-se um mestre em evasivas, mas também confessa-se culpado de todos os crimes que lhe são imputados, “independentemente de conhecê-los ou não”, ou mesmo de ter “participado dos mesmos de forma especial”. Prefere, desta forma, deixar uma mensagem para a História, sobre a ilegalidade completa da sua futura condenação, que já estava definida pela burocracia Judiciária do Estado.
Um dos crimes absurdos, que lhe é imputado, é a tentativa de assassinato de Lenin, falecido de causas naturais há mais de uma década, que teria sido promovido por pessoas que Bukharin sequer conhecia. Quando ele é defrontado com um suposto companheiro de crime, Vladmir Karelin – destruído física e moralmente pelas torturas no inquérito – responde à pergunta do Procurador (sobre se conhecia o presumido coautor) da seguinte forma: “Ele mudou tanto que eu não diria tratar-se do mesmo Karelin”.
Com a falência precoce do Governo interino e com a responsabilização cada vez maior que a mídia vem sofrendo, por ter promovido a ruptura da ordem constitucional do país, esta quer, agora, absolver-se. Trata de “separar-se” do seu Governo golpista e criar uma imagem de neutralidade, a partir da disseminação da tese que o Brasil “não será mais o mesmo”, depois da Lava-jato, o que é inteiramente falso.
Em primeiro lugar, é preciso ver se a Lava-jato, voltando para os trilhos da legalidade também irá punir os responsáveis pelos vazamentos seletivos, causadores de delações forçadas, que certamente destruirão a vida de pessoas que, no futuro, poderão ser inocentadas. É preciso verificar se os ladrões, que sonegam impostos todos os dias, passarão a ser punidos -dentro da legalidade- com o mesmo correto rigor que estão sendo punidos os políticos corruptos. Se teremos uma reforma política, a proibição de contribuição de empresas a partidos e candidatos. Se vamos democratizar os meios de comunicação e, através da soberania popular recuperada, dotar de nova legitimidade a esfera política democrática.
Se isso não ocorrer é mera falácia dizer que o Brasil vai “mudar” para melhor, depois da Lava-jato. Ao contrário, a Lava-jato como está -vista como causa do golpismo em curso e abalada pelos vazamentos seletivos na mídia oligopólica- será considerada apenas mais um espasmo de moralismo, fundado em razões justas que foram devidamente anuladas pelas manipulações políticas. Se isso ocorrer, poderemos dizer sobre a democracia, depois da Lava-jato (parodiado Bukharin sobre Karelin): “Esta democracia mudou tanto, que custa crer que seja a mesma da Constituição de 88”. E o grupo de Curitiba, que instaurou uma jurisdição nacional inconstitucional, será então conhecido apenas como um grupo de gestores de uma República do Galeão composta por civis.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
(Fonte: Site Carta Maior)