A Teologia no cotidiano
Eugênio Magno
O
saudoso teólogo e padre jesuíta João Batista Libânio, em uma ocasião em uma aula fez a seguinte provocação, invertendo a lógica habitual: “o que a política pode oferecer a um cristão que tem fé?” E com as
interações do grupo respondeu que, “a política oferece mediações para o
exercício da fé e permite à fé se concretizar materialmente”. Disse ainda que
“a política pode ser uma instância que denuncia os aspectos idólatras da fé e
da religião em suas práticas não-éticas. Que a política faz uma crítica
ideológica da fé”. A proposta aqui é fazer um breve exercício dialético onde a política interroga a fé e a
fé interroga a política.
É sabido que exegetas,
teólogos e biblistas se dedicam ao estudo bíblico, à pesquisa dos textos
sagrados e a história da salvação. Seus estudos trazem reflexões e ensinamentos sobre o Cristo
histórico e os costumes da época, entre outras tantas revelações importantes
que alicerçam a fé.
Mas o vivente
comum tem pressa, quer fazer a
teologia do (e no) cotidiano. Quer compreender o que Deus está a dizer. Afinal, são tantos fatos, tantos acontecimentos, tantos “sinais”, ou será que o que vemos não está sendo
mostrado por Deus, não são revelações...
Nunca é demais
lembrar o que a Bíblia ensina: o cristão é Rei, Sacerdote e Profeta. Daí então,
pergunto: onde está esse grande contingente de cristãos, a maior corrente
religiosa do mundo, com suas várias denominações, para exercerem com dignidade
e altivez seus mandatos, ministérios e a vida cidadã? E aqui não me restrinjo
aos religiosos, pertencentes às hierarquias das várias Igrejas e seitas que se
autointitulam cristãs. A cada esquina encontramos uma Igreja, com e sem aspas.
A todo instante ouvimos alguém pronunciar o nome de Deus: chefes de nações,
empresários, trabalhadores, apresentadores de rádio e TV, cantores... E a
quantidade de carros com adesivos: “Foi Deus que me deu”, “Mais um presente de
Deus”, “Deus é fiel”, "Com Deus tudo é possível", “Dirigido por mim, guiado por Deus” e por aí vai...
Mas, a despeito dessas declarações, tome tiranos chefiando nações,
empresários exploradores, fake news, desinformação, trânsito caótico e direção
criminosa. Será que tudo isso que estamos vivendo no mundo é apenas uma
“pegadinha” de mau gosto dos deuses, ou um baile à fantasia, onde os donos da
festa são meninos malvados brincando, com máscaras de seus heróis do tipo Hitler,
Stalin, Mussolini, Franco e mais um enorme elenco de prestidigitadores e outros
bichos e bestas do Apocalipse, ou seriam reencarnações dos algozes de Deus?
Os reis
enlouqueceram todos e, como Nero, atearam fogo nas cidades e as coroas
destinadas aos rebeldes da hora não são mais de espinhos. São caríssimas ogivas
midiáticas de milhões de dólares, jogadas na rede sobre as cabeças de plebeus
famintos de inutilidades que pagam com seu tempo e atenção por essas bagatelas
manipuladas por mãos e polegares de tecnocratas, desprovidos de qualquer
centelha de humanismo? Os verdadeiros reis a exemplo do Cristo Jesus, de
Nazaré, não têm trono e seus castelos são feitos de papelão e da sobra – pobre,
podre e rota – dos avarentos.
O anúncio da
morte de Deus, feito por Nietzsche há dois séculos e, que escandaliza tantos que
não compreenderam Nietzsche é infinitas vezes menos grave do que o uso do nome
de Deus em vão e o assassinato cotidiano do filho de Deus por aqueles que se
dizem seus seguidores. Ainda que não seja maioria, graças a Deus, não se pode
ignorar o crescimento espantoso do número de religiosos radicais, que estão de
costas para o Cristo dos Evangelhos. São militantes da teologia da prosperidade. Não sabem fazer a multiplicação dos pães, exceto, quando em benefício próprio. Criticam
a pajelança e vários outros cultos, enquanto seus fieis, de tanta fidelidade e
resignação morrem com a mão estendida, na sarjeta, nos corredores dos hospitais, quando lá chegam, atingidos por balas perdidas e achadas (em inocentes), de
inanição, ou dormindo como anjos bêbados, enquanto seus barracos desabam com as
águas que caem do céu.
O cristão também
deve ser profeta. E profeta é aquele que anuncia e denuncia: na família, nas
Igrejas, nos bairros, nas empresas, nos sindicatos, nas escolas, nas ruas, nas
ciências, na imprensa, nas artes, na política e na vida cotidiana. Mas os falsos profetas se multiplicaram oferecendo consolações falsas
e corrompidas pelo “farisaísmo” e pelos artifícios da retórica
e do legalismo de uma justiça injusta que insiste em não tirar a venda dos seus
olhos.
Diante da
escassez de vocações para profetas, sabedor de que a messe é grande e poucos
são os operários e arautos da “boa nova” e menor ainda é a plêiade dos que
denunciam, faço aqui uma breve encenação deste papel na tentativa de
amplificar a voz dos que não têm voz, mesmo que apenas por uns poucos
instantes, neste breve tempo e espaço. Tenho consciência de que é um grito
surdo e rouco, mas é legítimo. Vem das ruas, das vilas, das favelas, dos
ribeirinhos, dos povos indígenas, dos camponeses, dos quilombolas, dos
discriminados. É o grito das crianças famintas e daqueles que um dia construíram
o futuro e foram esquecidos no passado com seus cabelos esbranquiçados e o
corpo alquebrado pela desesperança. E até mesmo dos antigos abastados, da mesma faixa etária dos miseráveis, que não mais são chamados de
velhos ou idosos. Virou moda dizer que estão na “melhor idade”, para alimentar
sonhos de vida eterna e na contra partida surrupiarem suas economias...
É isso mesmo que acontece. Até
a classe média, da terceira idade que, até pouco tempo atrás era um mercado em
plena ascensão, está em queda vertiginosa e, agora, se vendo na bica de um
rebaixamento econômico e social, começa a dar sinais de insatisfação e ensaia
as primeiras articulações para a luta contra esse curto, mas medonho, tempo de obscurantismo
que vem destruindo décadas de avanços civilizatórios.
Antes tarde do que nunca.
Mas se faz
necessário indagar: quantas quarentenas... sofrimentos e mortes teremos que
viver? Quantas pandemias sobreviver ou padecer? Quanto nos resta aprender...