Adios
Paulo Roberto Barbosa*
"Queridos amigos,
Vou-me embora pra Pasárgada, onde não sou amigo do rei, as palmeiras já escasseiam, e é raro o sabiá que ainda canta. Tenho fundas raízes numa terra de cerrado, caatinga, floresta e mata-atlântica, mas também de carros, prédios, fumaça e muita safadeza. Não me será difícil mergulhar de novo nesse inferno-céu tão conhecido e peculiar. Quero bem àquele chão ainda úbere, apesar de tudo e todos que o sugam e o fazem foder-se muita vez, como o Peru de Vargas Llosa (O ano do bode). Pertenço a essa parte do globo, à qual minha pele está melhor adaptada e onde vivo bem, obrigado, apesar da muita saúva e do sol escaldante. Para ser sincero, não vejo a hora de voltar a solo tupiniquim. Antes, porém, de pegar o avião, permitam-me um adeus graciosamente melancólico, e em português, à Barcelona que me acolheu durante seis meses de sentimentos exacerbados. Resulta incômodo pensar que, daqui a uns dias, não terei mais o metrô da Plaza Espanya (na grafia catalã) e suas linhas vermelha, verde, azul, rosa e amarela levando para os confins e toda parte. Daqui a uns dias não verei mais o proverbial Café O’Canastro, onde bebi meu cortado pela manhã, observando furtivamente as ancas das camareiras, desde uma cadeira alta no balcão. Desaparecerão de vista os sonhos em pedra de Gaudí, os delírios plásticos de Miró, Picasso e Dalí, a exatidão urbana de Ildefons Cerdà, o informalismo cinzento de Tápies, o humor e as cores do pós-moderno Mariscal. Também sumirão os largos passeios, as ruas para pedestres, as bicis, a Passeig de Gràcia, a Gran Via, os tranvias, os funiculares, os autobuses vermelhos, as alubias, os albaricots, a crema catalana, os pollastres, os plátanos, os jamones, as butifarras, as granjas, os locutórios, as pastisserias e os avisos no asfalto, lembrando que em Barcelona também se morre, embora pareça virtualmente impossível enquanto se mora aqui. É triste pensar que não deambularei mais pelas velhas Ramblas, com suas temperamentais estátuas vivas, seus carteiristas, seus helados, suas paellas para turista e seu charme indiscutível. Não vagarei mais pelo Raval à procura de museus, cafés, pisos e tiendas improváveis. Não me perderei mais pelo Born e pelo bairro gótico, estupefato com suas vetustas igrejas medievais. Não mais admirarei os vultos célebres das praças, as sílfides dos parques, os hércules e as vitórias dos monumentos, os bigodes do gato de Botero, o garoto em bronze de um bebedouro na calle Pelayo, o touro pensador e a divertida girafa da Rambla de Catalunha, os grafittis tímidos, irregulares e circunscritos às portas de correr. Não mais as esguias, sinuosas e almodovarianas espanholas, em diferentes cores e estilos, pisando duramente os tacones no chão, como a dizer no molesten. Não mais os assombrosos árabes, sua fala de outro mundo, seus turbantes e suas enfeitadas mulheres, não mais os simpáticos chinos e seu furor comercial, não mais os latinos e sua infinita bonomia, não mais os africanos, os romanís, os japoneses, os ingleses, os estadunidenses, os nórdicos e até mesmo os espanhóis, com sua grata cordialidade, após as muitas guerras intestinas. Sobretudo, não mais o Venga!, o Adèus, o Sis plau, o De acuerdo, o Hola, o Mira e o Vale!.
Depois de amanhã, sentarei calmamente no Café O’Canastro para um prolongado adeus e um último cortado em homenagem a esta amante espanhola, pela qual evidentemente me apaixonei e a qual fatalmente devo deixar, não obstante nosso tórrido romance. Adios, Barcelona, que te vaya bien!"
Vou-me embora pra Pasárgada, onde não sou amigo do rei, as palmeiras já escasseiam, e é raro o sabiá que ainda canta. Tenho fundas raízes numa terra de cerrado, caatinga, floresta e mata-atlântica, mas também de carros, prédios, fumaça e muita safadeza. Não me será difícil mergulhar de novo nesse inferno-céu tão conhecido e peculiar. Quero bem àquele chão ainda úbere, apesar de tudo e todos que o sugam e o fazem foder-se muita vez, como o Peru de Vargas Llosa (O ano do bode). Pertenço a essa parte do globo, à qual minha pele está melhor adaptada e onde vivo bem, obrigado, apesar da muita saúva e do sol escaldante. Para ser sincero, não vejo a hora de voltar a solo tupiniquim. Antes, porém, de pegar o avião, permitam-me um adeus graciosamente melancólico, e em português, à Barcelona que me acolheu durante seis meses de sentimentos exacerbados. Resulta incômodo pensar que, daqui a uns dias, não terei mais o metrô da Plaza Espanya (na grafia catalã) e suas linhas vermelha, verde, azul, rosa e amarela levando para os confins e toda parte. Daqui a uns dias não verei mais o proverbial Café O’Canastro, onde bebi meu cortado pela manhã, observando furtivamente as ancas das camareiras, desde uma cadeira alta no balcão. Desaparecerão de vista os sonhos em pedra de Gaudí, os delírios plásticos de Miró, Picasso e Dalí, a exatidão urbana de Ildefons Cerdà, o informalismo cinzento de Tápies, o humor e as cores do pós-moderno Mariscal. Também sumirão os largos passeios, as ruas para pedestres, as bicis, a Passeig de Gràcia, a Gran Via, os tranvias, os funiculares, os autobuses vermelhos, as alubias, os albaricots, a crema catalana, os pollastres, os plátanos, os jamones, as butifarras, as granjas, os locutórios, as pastisserias e os avisos no asfalto, lembrando que em Barcelona também se morre, embora pareça virtualmente impossível enquanto se mora aqui. É triste pensar que não deambularei mais pelas velhas Ramblas, com suas temperamentais estátuas vivas, seus carteiristas, seus helados, suas paellas para turista e seu charme indiscutível. Não vagarei mais pelo Raval à procura de museus, cafés, pisos e tiendas improváveis. Não me perderei mais pelo Born e pelo bairro gótico, estupefato com suas vetustas igrejas medievais. Não mais admirarei os vultos célebres das praças, as sílfides dos parques, os hércules e as vitórias dos monumentos, os bigodes do gato de Botero, o garoto em bronze de um bebedouro na calle Pelayo, o touro pensador e a divertida girafa da Rambla de Catalunha, os grafittis tímidos, irregulares e circunscritos às portas de correr. Não mais as esguias, sinuosas e almodovarianas espanholas, em diferentes cores e estilos, pisando duramente os tacones no chão, como a dizer no molesten. Não mais os assombrosos árabes, sua fala de outro mundo, seus turbantes e suas enfeitadas mulheres, não mais os simpáticos chinos e seu furor comercial, não mais os latinos e sua infinita bonomia, não mais os africanos, os romanís, os japoneses, os ingleses, os estadunidenses, os nórdicos e até mesmo os espanhóis, com sua grata cordialidade, após as muitas guerras intestinas. Sobretudo, não mais o Venga!, o Adèus, o Sis plau, o De acuerdo, o Hola, o Mira e o Vale!.
Depois de amanhã, sentarei calmamente no Café O’Canastro para um prolongado adeus e um último cortado em homenagem a esta amante espanhola, pela qual evidentemente me apaixonei e a qual fatalmente devo deixar, não obstante nosso tórrido romance. Adios, Barcelona, que te vaya bien!"
* Paulo Barbosa é doutorando em artes, com pesquisa em cinema, pela Escola de Belas Artes, da UFMG.