(Imagem reproduzida pelo Site Outras Palavras)
A política pictórica de Godard
Em toda sua obra, da Nouvelle Vague aos filmes do século XXI, cineasta francês que faz 90 anos em dezembro utilizava a pintura como elemento essencial. Às vezes de forma irônica, noutras para afastar o cinema da vulgaridade capitalista
No incontornável texto “Jean-Luc Godard: cinema e pintura, ida e volta”, integrante do livro Cinema, vídeo, Godard (Cosac Naify), Philippe Dubois distingue dois momentos da relação ubíqua entre cinema e pintura na obra godardiana. No primeiro deles, concernente aos filmes produzidos na década de 1960, a pintura se mostra no cinema como uma prática de “citação” e “ex-citação” generalizada, pela qual reproduções frontais de quadros canônicos invadem a diegese, interagindo implícita ou explicitamente com as personagens, seus rostos, situações ou vínculos afetivos. Lembremos, por exemplo, em Acossado (1960), da mania de Patricia (Jean Seberg) de colar na parede de seu apartamento pôsteres de retratos pintados por Pierre-Auguste Renoir, Paul Klee e Pablo Picasso com os quais se identifica. Ou, então, em Tempo de guerra (1963), da cena hilária em que os soldados Michelangelo (Albert Juross) e Ulysses (Marino Mase) voltam para casa e presenteiam solenemente suas esposas, Venus (Geneviève Galéa) e Cleopatre (Catherine Ribeiro), com uma valise repleta de tesouros do mundo: monumentos, meios de transporte, lojas, obras de arte, indústrias, riquezas da terra, maravilhas da natureza, os cinco continentes, tudo sob a forma de cartões-postais cujo ganho parece valer exatamente como a posse das coisas em si — o valor de exposição tornado “objeto de culto, de reinvestimento simbólico de segundo grau”.
Nesse amálgama entre turismo e pilhagem, espetáculo e barbárie, já despontava a chave da reflexão godardiana sobre arte pop e cultura de massa, cada vez mais evidente ao longo dos anos 1960. Digamos que, no começo da carreira, Godard partiu de referências espirituosas a gêneros hollywoodianos, especialmente filmes B, noir e de gângster, mas também de musicais, frutos da paixão cinéfila contraída enquanto era redator exímio da revista Cahiers du cinéma, e desembocou no exame detalhado da sociedade de consumo, acentuando seu aspecto mortífero, em um paralelo sugestivo com o melhor de Andy Warhol. Em Week-end à francesa (1967), um casal burguês viaja pelo interior da França para reclamar uma herança e no caminho depara com um engarrafamento descomunal, filmado em travelling e livremente inspirado no conto “A autoestrada do Sul” (1964), de Julio Cortázar, no qual a violência escala desde acidentes de trânsito, estupro, assassinatos, até canibalismo, fenômenos testemunhados com indiferença atroz em meio a passatempos. Sem dúvida, por perpetuar a lógica industrial do trabalho alienado e do tempo livre, o cinema estava no cerne da crítica godardiana, sendo então abandonado na iminência de maio de 1968, quando Godard, na companhia de Jean-Pierre Gorin, fundou o Grupo Dziga Vertov, coletivo audiovisual militante de orientação maoísta que, em vez de proceder segundo tais modelos, filmava politicamente.
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(Fonte: Outras Palavras)
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