sexta-feira, 30 de outubro de 2009

OS SINOS DOBRARAM EM BARRA CONTRA A TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO


Réquiem para a transposição do São Francisco
Dom Tomás Balduino*
É NATURAL que chefes de Estado tenham o sonho de vincular sua memória a uma grande obra perene. Brasília é o monumento que imortalizou Juscelino Kubitschek. Imagino que Lula, nordestino que passou sede no semiárido, carregou pote d'água na cabeça, possa estar sonhando em se ligar pessoalmente com o nordestino rio São Francisco, símbolo da integração nacional, transformando o grande sertão da seca num abençoado oásis graças a um gigantesco projeto de transposição de suas águas. O projeto nada deveria à Transamazônica nem a Itaipu. Isso explica, quem sabe, sua apaixonada tenacidade em querer levar adiante essa obra apesar das inúmeras reações contrárias de parte do Judiciário, do Ministério Público, da mídia, dos cientistas, do episcopado católico, das organizações sociais, dos atingidos pelas obras: camponeses, quilombolas, grupos indígenas.
Na sua excursão ao longo do projetado canal, levando aos palanques Ciro Gomes, além da candidata Dilma Rousseff, não faltou, da parte do presidente, o irado recado para os que ele considera obstáculos à transposição. Enquanto isso, chamou a atenção de muitos o gesto do bispo da Barra, dom Luiz Cappio, ordenando o dobre de finados na catedral enquanto Lula perambulava por aquela cidade.
Os sinos são a secular e inconfundível marca da cultura cristã nos templos das grandes metrópoles e nas pequeninas capelas do interior. Acompanham alegrias e esperanças, tristezas e angústias da comunidade nos eventos maiores do lugar ou marcam, com seu toque lúgubre, a morte dos entes queridos e o Dia de Finados. Conhecendo pessoalmente os sentimentos desse homem, que não hesitou em colocar a sua vida pelo povo ribeirinho, bem como pela revitalização do rio, posso dizer que esse gesto, o do dobre dos sinos, bem como o do jejum, tem o peso de uma profecia. Esses símbolos querem dizer que a transposição do São Francisco não se concluirá. Morrerá. Descansará em paz. Réquiem, então, para ela! Muita gente está convencida da inviabilidade desse megaprojeto. Eis as razões. A transposição pretende guindar continuamente, em um desnível de 300 metros, 2,1 bilhões de m3 da água mais cara do mundo para o Nordeste, que, por sua vez, já acumula 37 bilhões de m3 a custo zero. Se o problema da seca do Nordeste não se resolve com esses 37 bilhões de m3 armazenados, irá ser resolvido com 2,1 bilhões de m3 da transposição? Uma certeza muitos têm: os 70 mil açudes do Nordeste construídos nesses cem anos demonstram que lá não falta água. O que falta é a distribuição dessa água. Basta implantar um vigoroso sistema de adutoras, como o proposto pela Agência Nacional de Águas, por meio do "Atlas do Nordeste", que foi abafado pelo governo. Trata-se de levar água por meio de uma malha de tubos e adutoras a toda a população difusa do semiárido para o abastecimento humano, sem a transposição. Enquanto a transposição atenderia 12 milhões de pessoas em quatro Estados, segundo dados oficiais, o projeto alternativo atenderia 44 milhões em dez Estados. Custo: metade do preço da transposição. Nesse emaranhado de conflitos, existe um esperançoso toque de sino. Enquanto, de um lado, ainda prevalece a indústria da seca (a transposição aí se inscreve), que rende uma fortuna para os políticos e empresários e mantém o povo na situação do flagelado retirante, segundo a expressão lírica de Luiz Gonzaga, de Portinari, de Graciliano Ramos, de João Cabral de Melo Neto etc., do outro lado está surgindo uma nova consciência nas comunidades populares carregada de esperança libertadora.
Trata-se da convivência com o semiárido. Como os povos do gelo, das ilhas e do deserto vivem bem na convivência com seu habitat, assim esse povo começa a descobrir a extraordinária riqueza de vida do Nordeste. A questão não é "acabar com a seca", mas de se adaptar ao ambiente de forma inteligente. Nessa linha, um pedreiro sergipano inventou a tecnologia revolucionária das chamadas cisternas familiares de captação da água de chuva para o consumo humano. Em mutirão já foram construídas 290 mil cisternas como parte de um projeto de 1,3 milhão de cisternas para captação de água da chuva. Está chegando, pois, a transfiguração do povo e da terra construída de baixo para cima, no respeito e na convivência, libertando-se dos projetos faraônicos devastadores, impostos autoritariamente de cima para baixo. Esse humilde toque de sino, alegre e festivo, já se pode ouvir com nitidez, pois essa mudança, cheia de vida e esperança, é um fato no grande sertão nordestino.
* Mestre em teologia e pós-graduado em antropologia e linguística, é bispo emérito de Goiás e ex-presidente da Comissão da Pastoral da Terra. (fonte: Folha de São Paulo, 25.10.09)

3 comentários:

  1. Obviamente o Sr. nunca passou sede na vida, nen teve que tomar banho de bacia. Sou natural de Campina Grande PB, a maior Cidade do interior do nordeste. Pois bem, a cidade é abastecida pelo açude Epitacio Pessoa, o que não impediu o racionamento de agua no ano de 1998. ai o sr vem me falar que não falta agua. Diga isso pra quem tem que esperar o ano todo para encher uma cisterna de 4000 lts, e esperar as chuvas do proximo ano para vela cheia de novo. Fique com os seus sinos e seus protestos, mas eu garanto que na região tem muito mais gente a favor.
    Não adianta um sistema de abastecimento eficiente se não ha agua para abastecer, agua essa que e despejada no mar aos bilhoes de litros por segundo, o que vai ser desviado não corresponde nem a 10% do valor que é derramado no mar, sem falar na revitalização total do rio.
    pois bem aqui foi dado menrecado

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  2. Caro Kleber,

    A ideia da transposição em si, não é ruim. A má notícia é que ela, se acontecer e se der certo tecnicamente, certamente não tem a população pobre do Nordeste como principal beneficiária e sim os poderosos: as indústrias, o agronegócio... Fora que é uma obra faraônica que vai engordar a porca de muita gente que não precisa.

    Ainda assim, o blog "minasegerais", embora seja um espaço para que eu possa expressar minhas opiniões sobre temas candentes que, normalmente, quando divulgados na mídia tradiconal recebem um outro tipo de tratamento, é um espaço democrático. Portanto, fica registrado seu recado que, alías deveria ser endereçado a dom Tomás Baulduíno, o autor do artigo.

    Abraço,

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  3. Olá Kleber,sou e estou aqui em Ouricuri-PE e digo que é muito fácil estar numa cidade onde pra ter água basta apenas ligar a torneira!
    Para todos ter uma "pequena noção" do que acontece por aqui, basta ler: http://www.fundaj.gov.br/docs/tropico/desat/sakamoto.html.
    Olha povo de cidade grande, aproveita e lêem e façam vocês mesmos suas conclusões!
    Jhonatan Fernandes Gomes

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