terça-feira, 23 de setembro de 2025

O BURACO É MAIS EMBAIXO

(Foto: José Cruz da Agência Brasil / EBC)

 

O colapso dos Sistemas 

e os sequestros das Instituições


Eugênio Magno*

As Crises são plurais. Quando achamos que já estamos no fundo do poço, somos lançados para profundezas ainda mais abissais. Mas já disseram que não vivemos uma época de crise, mas uma crise de época.

O hipercapitalismo não dá trégua. O dinheiro tem sido a régua do mundo e o capitalismo não é exclusividade do mercado e de nações tradicionalmente capitalistas. Países socialistas e comunistas também se renderam a esse sistema econômico. Para minimizar a aberração, apelidaram o modelo de capitalismo de estado. Ainda que pese certos benefícios socioeconômicos destinados às populações locais, o resto do mundo sofre cada vez mais os impactos dessa sanha das grandes potências em aumentar a dependência dos países do sul global, o controle do mundo e de suas riquezas.

A extrema direita avança mundo afora e as sandices de Donald Trump que encarna o papel de imperador global extremista parecem não ter fim. O tarifaço imposto por ele a vários países que têm os Estados Unidos da América como principal país importador de seus produtos é uma grande ameaça para a economia de muitas nações. Mas é também uma jogada extremamente arriscada para as recalcitrantes pretensões estadunidenses. Empurra vários estados nacionais para os BRICS e para um maior alinhamento com a China o que compromete a ruidosa hegemonia norte-americana.

No Brasil, país estratégico no mapa da geopolítica econômica mundial, as repercussões dessas medidas são desestabilizadoras, não só economicamente, mas também e, principalmente, no campo político. Estamos às vésperas de um novo ano de eleições presidenciais e um dos principais atores nessa corrida é o ex-presidente, Jair Bolsonaro. Apesar de condenado pela justiça por tentativa de golpe de estado e de estar inelegível, é possuidor de grande capital político, conta com o apoio de Trump e é o principal representante da extrema direita em nosso país. 

Desde a prisão domiciliar de Bolsonaro sua família se mobilizou a ponto de um dos seus filhos, Eduardo Bolsonaro, abandonar a cadeira de deputado federal e se juntar a outros bolsonaristas nos Estados Unidos para articular com o governo estadunidense anistia para o seu pai e o impeachment do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. As investidas da família do ex-presidente já garantiram a aplicação da lei Magnitsky para Alexandre de Moraes e sua esposa e o cancelamento do visto de passaportes norte-americanos de mais sete juízes da Suprema Corte Brasileira e de familiares de outros membros do governo. Como se não bastasse, Donald Trump resolveu taxar os produtos brasileiros exportados para os Estados Unidos, em 50%, com a desculpa de retaliação à justiça brasileira por não conceder anistia a Jair Bolsonaro.

Surfando na onda das ameaças dos EUA e dos posicionamentos tresloucados da família do ex-presidente, a bancada bolsonarista no Congresso Nacional, tomou de assalto as mesas diretoras do Senado e da Câmara, impedindo o funcionamento das duas casas. A proposta dos celerados era colocar em pauta votações de impeachment do ministro Alexandre de Moraes e de anistia para os golpistas de 8 de janeiro de 2023, além de impedir a votação de pautas de interesse do governo, como a da isenção do Imposto de Renda para quem ganha até cinco mil reais mensais. O que mais causa espanto é saber que a atitude desses parlamentares e a investida de Donald Trump contra a soberania nacional tem o apoio de governadores de importantes estados da federação e de um grande número dos – ditos, patriotas – eleitores de Bolsonaro.

Com tudo isso e mesmo com o voto descabido, do ministro do STF, Luiz Fux, o julgamento aconteceu e, à despeito das ameaças sofridas, a primeira turma do Supremo decidiu pela condenação de Bolsonaro e de vários integrantes do núcleo principal da tentativa de golpe, por quatro votos a um. Carmem Lúcia, Flávio Dino e Cristiano Zanin acompanharam o voto do relator, Alexandre de Moraes. Sobre o ministro, Moraes, é importante ficar claro que ele não é o algoz de Bolsonaro. Embora Alexandre de Moraes venha se mostrando o mais apto entre os ministros para a condução de processos como esse, agiu em nome da Corte Suprema. É um dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal e, por sorteio, calhou de ser a sua turma a conduzir o julgamento e ele ser o relator do processo envolvendo o ex-presidente, Jair Messias Bolsonaro e mais sete dos participantes da tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, entre eles, vários generais. É preciso que o povo brasileiro pare com a mania de estar sempre em busca de um salvador da pátria para depositar em tal pessoa o poder de definir os rumos do país. Isso é ruim para a nação e para os poderes constituídos, além de dar a esses eleitos um protagonismo que os coloca – para a opinião pública – acima das instituições que representam.

O Brasil vive momentos difíceis. São muitos os problemas a serem enfrentados e o governo necessita de muito mais força e fôlego para dar conta de tantos desatinos. Embora seja um governo de frente ampla e mesmo tendo o Centrão em sua base de apoio, um arranjo articulado para conter o avanço do bolsonarismo, argumenta não conseguir maioria no Congresso para aprovar suas pautas. Contabiliza sucessivas chantagens da Câmara dos Deputados e, não se sabe porque, continua cedendo às suas constantes exigências. As várias e históricas práticas duvidosas dos congressistas, que já foram apelidadas de quinzinho (%), mensalinho, mensalão e orçamento secreto – agora escancaradas como emendas parlamentares –, alimenta a boca grande de parlamentares de todos os partidos e continua sendo a moeda de troca dos governos da vez.

É preciso ser muito ingênuo para acreditar que as emendas beneficiam apenas o Centrão e a extrema direita. Contudo, ainda assistimos eleitores fanáticos das duas principais correntes políticas trocando acusações sobre a destinação dessas verbas para apoiar determinados projetos de apadrinhados dos seus opositores, como se o mesmo não acontecesse com os seus políticos de estimação. A prática é comum não apenas na Câmara Federal, mas também nas casas legislativas estaduais e municipais. E em razão dessa prodigalidade viciosa atender a todos os parlamentares, nenhum deles arrisca barrar sua continuidade para não ficar de fora da partilha. Esse negócio é um vespeiro. Se resolverem investigar a fundo vai respingar pra todo lado e poderemos ter muitíssimas surpresas.

Ulisses Guimarães realmente estava correto, a cada pleito temos um Congresso pior do que o anterior. Tem quem atribua a responsabilidade ao povo que o elege, mas essa não é a verdade. O povo vem sendo constantemente enganado. Os parlamentares – eleitos para representar o povo –, em sua maioria, só fingem compromisso com o eleitor nos períodos de campanha. Durante seus mandatos defendem apenas interesses próprios e os dos grupos empresariais e políticos a que pertencem. O lamentável é que os governos de plantão discursam contra, mas não enfrentam pra valer a situação e ainda pagam pela canalhice. No verdadeiro leilão que acontece quando da votação de pautas econômicas e sociais, dá para imaginar o quão difícil dever ser para alguns congressistas decidirem a quem vai trair, se o governo ou os ricaços, afinal é muita grana, tanto de um lado quanto do outro. Na dúvida, traem o povo, como sempre, e ainda têm a cara de pau de exigirem respeito quando a população os chama de traidores da pátria.  

Os três poderes da república têm perdido a capacidade de atuar como freios e contrapesos do Estado democrático de Direito. As constantes invasões de fronteiras de um dos poderes naquilo que se configura como atribuições constitucionais de outro poder descredibilizaram as instituições republicanas que se veem mergulhadas numa crise de identidade sem precedentes. 

As engrenagens do Estado Brasileiro carecem de muito azeite para se ajustarem. Por mais que o Executivo seja o poder que mais desperta paixões, por ser o de maior visibilidade e em razão de vivermos sob a égide de um regime presidencialista, esse é o poder que menos tem tido poder real em nosso país. É notória a judicialização da política, assim como a politização da justiça. O sequestro de pautas, projetos, propostas de leis e orçamentos, propicia a alegação do status de refém por parte dos poderes, em rodízio, e institucionaliza o tráfico de influência tornando tais práticas oficiais, “legais”. São muitos os acordos, nepotismos diretos e cruzados, usos e apropriação de bens e de divisas públicas em benefícios privados. Isso para não falar dos salários altíssimos e dos penduricalhos remuneratórios como auxílio-paletó, apartamentos funcionais, carros, motoristas, combustível, auxílio-mudança, pagamento de escola para filhos, convênio médico, vale-alimentação, cartão corporativo e otras cositas más, como as rachadinhas, que não deveriam ser verbalizadas no diminutivo.

Em meio a tantos arranjos no andar de cima, envolvendo a cúpula do poder, só quem perde é o povo, especialmente os da média classe média para baixo, uma vez que os endinheirados se locupletam com políticos e gestores da alta administração pública. Essas conveniências entre o capital, a política e a administração pública nos remete a um tempo em que a grande imprensa, apesar dos seus comprometimentos, ainda tinha em seus quadros, profissionais que ousavam desafiar o sistema e denunciavam os abusos. Nos idos de 1970, em plena ditadura militar, o diretor de redação do jornal Estado de São Paulo, Fernando Pedreira, encarregou o jornalista, Ricardo Kotscho de coordenar uma série de reportagens, apoiado pelas sucursais do jornal em vários estados brasileiros, sobre as mamatas dos superfuncionários do estado. A matéria que durou várias semanas era chamada de “o escândalo das mordomias” e dava conta dos privilégios e das ilhas de bem-viver de ministros de estado e altos funcionários civis e militares de primeiro, segundo e até de terceiro escalão. Mais de meio século se passou e nada mudou de lá para cá.

Recentemente, o fundador do Instituto Conhecimento Liberta (ICL), Eduardo Moreira, lançou o manifesto “Somos 99%”. A campanha tinha como mote, “Por um Estado Ético, Justo e Transparente” e denunciava os privilégios do 1% mais rico da população, responsável por concentrar 63% da riqueza, além de criticar os abusos de políticos fisiológicos e servidores com altos salários. As principais reinvindicações do manifesto são as seguintes: Fim dos supersalários no setor público; extinção das emendas secretas; redução da carga tributária sobre os trabalhadores; tributação mais justa sobre os mais ricos; combate à impunidade entre políticos, juízes, empresários, banqueiros e militares; divulgação ampla do Portal da Transparência; Cobrança de dívidas bilionárias de grandes latifundiários e empresas; proibição de eventos públicos considerados “vergonhosos” e sem transparência. O manifesto, em forma de abaixo-assinado, embora tenha contado com mais de 400 mil assinaturas e a adesão de muitos parlamentares de vários partidos, ainda não provocou uma ação efetiva na direção para a qual aponta.

O povo não é bobo, mas os excessos retóricos confundem os incautos que, teleguiados pela irresponsabilidade de alguns influenciadores, não percebem o quanto governo e oposição se contradizem no discurso e na ação, e como o jogo político tem se transformado em guerra de torcidas com foco único e exclusivo em eleições. Sobram oportunismos, populismos e propaganda. E com a internet, as disputas políticas se apequenaram ainda mais. O discurso eleitoreiro tomou o lugar da grande política e do debate de projetos para o país. Quem tem senso crítico compara o comportamento dos militantes fanáticos com o das mais raivosas torcidas de futebol. É só gozeira, ataques odiosos, memes, mentiras e falatórios desconexos. Uma demonstração cabal de analfabetismo político e total desconhecimento dos verdadeiros interesses que estão em jogo. É como se estivéssemos permanentemente em campanha eleitoral, enquanto a malversação do dinheiro público impera, a população empobrece e as narrativas alienantes manipulam as massas. Os fatos estão aí, só não enxerga quem não quer.

As fraudes no INSS, por exemplo, há quem diga que começou no governo passado. Outros dizem que é herança do mandato de Michel Temer. Entretanto, elas continuaram nesse governo. Faz tempo que a Procuradoria Geral da República (PGR) denunciou, mas só agora veio à tona. E enquanto as falcatruas continuavam deu tempo de o governo e os seus ministros – do Executivo e do Judiciário –, jogarem mais uma vez contra o povo. Nesse caso, contra os aposentados, ao limitar reajustes, retirar benefícios já conquistados, como os do BPC e derrubar direitos, como o da revisão da vida toda, cujo impacto no caixa do INSS seria bem menor do que os valores até então contabilizados nas fraudes.

O governo tem falado em taxar os super-ricos, mas com dinheiro carimbado para políticas sociais. Pois, como ainda existe o teto de gastos (novo arcabouço fiscal), o imposto cobrado dos mais ricos pode voltar para eles no pagamento dos juros da dívida. Muitos brasileiros ainda não entenderam que a cobrança de IOF proposta não é para a taxação dos super-ricos. A taxação dos super-ricos morreu na praia. Foi anunciada de manhã e no final da tarde o próprio governo voltou atrás. IOF é Imposto sobre Operações Financeiras e atinge todo mundo, de forma direta ou indireta. Qualquer cidadão que faz algum outro investimento fora da poupança será ser taxado. É imposto sobre juros e consumo. Vai dificultar a vida do médio, pequeno e até do micro empreendedor que pagará mais impostos e, claro, vai repassar esses custos para o consumidor final. Em termos de “bondades”, a única coisa que o governo conseguiu acenar para o povo nesses três anos foi a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até 5 mil reais mensais. Mesmo assim, até a publicação deste artigo a proposta se quer tinha sido votada.

Mas isso não é tudo. Muitas outras coisas estranhas têm acontecido. É assombroso que muitas delas ocorram entre os próprios governistas. De cara limpa, duas grandes lideranças petistas no Senado, votaram pelo PLP do aumento do número de parlamentares. Na sequência, deputados proeminentes do campo progressista, alguns deles do próprio PT não estavam presentes na votação do PL da Devastação. Foram necessários os vetos de Lula para impedir esses dois projetos de lei. Pergunta-se: é uma jogada ensaiada onde parlamentares vão para o sacrifício de ficar mal com a opinião pública, apoiando ou se isentando de barrar maluquices, para abrir chances do presidente Lula exercer seu poder de veto e ganhar mais simpatia, ou é bate-cabeça mesmo? As duas alternativas são ruins para o PT e para a base governista. Melhor para Lula que, com essas e outras vai recuperando aprovação, ainda que a situação do país, em geral, seja uma das piores das últimas décadas.

A incontestável liderança longeva de Lula como representante do campo democrático progressista, somada ao seu prestígio internacional, carisma pessoal, mas também a um personalismo obstinado, impediram a formação e a projeção de novos líderes no campo da esquerda por décadas. E como todos sabem, uma liderança não se constrói da noite para o dia. O ano de 2026 se aproxima e só se ouve falar em Lula como alternativa para impedir a volta da extrema direita ao poder. Em razão da deliberada falta de opções, ocasionada pela recorrência de erros sequenciais por parte dos progressistas, muito provavelmente ele deverá ser o candidato, e se isso acontecer, certamente, será o vencedor. Sua vitória, a curto prazo, será muito boa para mais uma tomada de fôlego do Partido dos Trabalhadores e para o seu projeto de poder, mas pode ser péssima para o líder, Lula. Corre o risco de ganhar e não governar e, depois de tanto prestígio, se ver numa maré baixa. Logo ele, que figura entre os melhores presidentes do Brasil de todos os tempos, cuja aprovação popular já chegou a 87%.

A despeito das críticas que podem ser feitas a Lula, a esse governo de frente ampla e ao STF, não podemos nos esquecer da truculência com a qual a extrema direita tem agido, das ameaças à soberania nacional e do mal que o bolsonarismo tem causado à república e, consequentemente, à política, à democracia e ao tecido social brasileiro. E não nos enganemos, esse Congresso, com raríssimas exceções, é uma vergonha. Nos últimos dias, a deputada Bia Kicis (PL/DF), renunciou da condição de líder da minoria para que seja nomeado em seu lugar, o deputado que deveria estar sendo cassado por ter abandonado sua cadeira no Parlamento, Eduardo Bolsonaro (PL/SP) que, enquanto recebe salário pago pelo povo brasileiro, trama contra o país nos Estados Unidos da América do Norte. Ainda que não passe no Senado ou o STF venha a derrubar outros absurdos aprovados na calada da noite, os deputados federais emplacaram a anistia para os golpistas e os arruaceiros de oito de janeiro e a PEC da Bandidagem. Essa última contou, inclusive, com votos de 12 deputados do PT e de mais outras tantas dezenas de votos de integrantes da base do governo. Os únicos partidos que não votaram a favor dessa aberração foram o PSOL, o PCdoB, a Rede Sustentabilidade e o Novo.

Contudo, e ainda que sem muita esperança, a população está atenta. No último domingo, dia 21 de setembro, o povo que já não aguenta mais tanta traição, encheu as ruas do país para protestar contra o tresvario desse que tem sido considerado o pior Congresso da história do Brasil. 


*O autor é comunicólogo e jornalista. 
Doutor em Educação e mestre em Artes Visuais. 
Trabalha com Educação comunicacional e midiática.

4 comentários:

  1. Realmente estamos a deriva

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  2. Você fez uma boa síntese dos problemas da governança brasileira, mas seu texto me angustia pelo pessimismo acachapante, sem qualquer fresta de luz! O mistério maior é que, com todos esse problemas reais, continuamos aqui, resistindo em viver, em superar as dificuldades do cotidiano… Para as pessoas mais velhas, como eu, mesmo as de esquerda ou progressistas, o país em que vivemos hoje, apesar dos pesares, parece melhor do que aquele de gerações passadas… Sinto necessidade de falarmos mais das boas coisas, do que conseguimos apesar das tormentas!… A boa política é arte da esperança, e a crítica precisa estar antenada com possibilidades de superação! Senão ficamos muito pessimistas!

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  3. Obrigado pelo retorno. Concordo plenamente. Gostaria de ser otimista, não precisar escrever algo assim.
    Mas não é um caso perdido. Sou cristão e cultivo a virtude teologal da Esperança. Sigo esperançando... Dias melhores virão!

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