(Imagem: Fusion Medical Animation / Unplash)
O Vírus
interroga as instituições
Eugênio Magno
Mais do que qualquer curso, disciplina e/ou formação acadêmica, a vida é
pedagógica. Ainda que de forma cruenta, nos trás seus ensinamentos e nos interroga
sobre o nosso destino, o futuro que estamos construindo e nos impõe – neste
momento específico em que vivemos –, uma pausa para reordenar o rumo das
coisas. Muito embora a letalidade da pandemia engendrada pela COVID-19 seja um
fato irrefutável, a generosidade da vida no planeta para com os humanos é imensa
e nos oferece agora a chance de sermos, fazermos e vivermos de forma diferente
da que até então temos vivido. Resta saber se iremos tirar algum proveito desta
lição. Frei Beto gosta de dizer que “é melhor deixar o pessimismo para tempos
melhores”, mas diante das posições de algumas lideranças de vários países, como
é o caso dos integrantes do governo brasileiro, é difícil ser otimista no atual
momento histórico.
Devemos salvar
a vida humana ou a economia, protegendo multimilionários e construindo riquezas
sobre cadáveres? Às vezes é necessário que cheguemos ao pico de uma
excepcionalidade como esta da pandemia provocada pelo coronavírus para nos
darmos conta do quanto a vida humana vem sendo desvalorizada pelo próprio homem.
Em tempos de
livre circulação de informações, das mais balizadas àquelas para as quais não
existe sequer qualificação, é importante que tenhamos o bom senso de nos
ancorarmos em reflexões sóbrias e equilibradas para, a partir desses
referenciais, formarmos e emitirmos opinião. Se não, vejamos: são notórios os
ataques sofridos pelas democracias, orquestrados por fake news produzidas e
difundidas em massa, especialmente pelas redes sociais, gerenciadas por grupos
de mídia internacionais e ideólogos hiperneoliberais e anarcocapitalistas que
se utilizam justamente de prerrogativas democráticas, como a liberdade de
expressão, para fazer seus proselitismos. Entretanto, essas estratégias
comunicacionais abjetas, direcionadas para a conquista de corações e mentes da
grande massa manipulável, têm encontrado uma dura resistência por parte
daqueles que pensam e estão engajados na construção de um mundo melhor.
Na penúltima semana
de abril entrou em circulação, A Cruel
Pedagogia do Vírus, o mais novo livro do pensador Ibero-Americano, o
português, Boaventura de Sousa Santos. Trata-se de uma obra curta da Editora
Almedina (Coimbra, Portugal, abril, 2020). Aqui no Brasil, o ensaio está
disponível exclusivamente em e-book, como um dos volumes da coleção Pandemia
Capital, da Boitempo Editorial ao custo de – apenas – cinco reais. No livro,
Boaventura argumenta, de forma didática, sobre os desdobramentos da pandemia do
coronavírus (COVID-19) em uma conjuntura em que se somam várias outras crises,
entre elas as de ordem econômica e política. Nas poucas páginas dos cinco
capítulos do ensaio, Sousa Santos problematiza uma série de questões que se deslindam
em torno da crise pandêmica, para além do factual. Tudo muito condensado, mas
com indicações claras e fortes das várias feridas políticas e socioambientais
mal curadas que vão ficando cada vez mais visíveis a olho nu, com o avanço da
pandemia.
Embora
convencido de que os fins não justificam os meios, o autor chama a atenção para
o fato de que apesar das consequências negativas do arrefecimento da economia, existem
também as positivas. E toma como exemplo, o fato de um especialista em
qualidade do ar, da agência espacial estadunidense (NASA) ter afirmado que
nunca houve uma diminuição da poluição atmosférica numa área tão vasta do
planeta, como neste período de pandemia global. Diante dessa e de outras
constatações e, dentre as muitas interrogações postas pelo Vírus, segundo
Boaventura de Sousa Santos, destaco as seguintes: “Quererá isto dizer que no
início do século XXI a única maneira de evitar a cada vez mais iminente
catástrofe ecológica é por via da destruição maciça da vida humana? Teremos
perdido a imaginação preventiva e a capacidade política para a pôr em prática?
A democracia carece de capacidade política para responder a emergências?”.
A problemática
central enfocada pelo autor gira em torno do debate das ciências sociais sobre
qualidade e verdade das instituições em momentos de normalidade e em situações
excepcionais – em que momento se pode conhecê-las melhor? A tese de Boaventura
é de que tanto uma quanto a outra situação permitem conhecimento revelando,
naturalmente, coisas diferentes. Daí ele parte para a enumeração de pontos que
o ajudam na problematização das revelações decorrentes do coronavírus.
No entender de
Boaventura, a pandemia apenas agrava uma situação de crise que a sociedade
mundial vem sendo sujeitada a décadas, com o avanço do neoliberalismo. Mas este
agravamento da crise também faz cair por terra a ideia de que não existe
alternativa ao modo de vida imposto pelo hipercapitalismo. “Como foram expulsas
do sistema político, as alternativas irão entrar cada vez mais frequentemente
na vida dos cidadãos pela porta dos fundos das crises pandêmicas, dos desastres
ambientais e dos colapsos financeiros”, argumenta Sousa Santos. Este é mais um
dos imperativos que o Vírus nos dá a (re)conhecer. Assim como também podemos
afirmar em uníssono com o autor que “a pandemia não é cega e tem alvos privilegiados,
mas mesmo assim cria-se com ela uma consciência de comunhão planetária de algum
modo democrática”. Mas, de uma democracia manca, uma vez que o darwinismo
social praticado pelos chamados países desenvolvidos, em períodos de exceção
como o que vivemos demonstram uma total contrariedade ao processo de avanço
civilizatório.
É clara a
vulnerabilidade ao vírus por parte de uma grande maioria da população mundial
que sempre esteve entre os “grupos de risco” devido a precariedade da vida a
que sempre foram subjugados.
Até a
indicação preventiva de maior consenso mundial para trabalhar em casa, em
auto-isolamento é impraticável, para vários segmentos profissionais, aqueles que
fazem os serviços essenciais e os trabalhadores informais e precarizados que
são obrigados a escolher entre ganhar o pão diário ou ficar em casa e passar
fome. Boaventura também nos chama a atenção para o fato de que “as
recomendações da OMS parecem ter sido elaboradas a pensar numa classe média que
é uma pequeníssima fracção da população mundial”.
O Vírus expõe
as vísceras de nossa sociedade, não somente as do capital, dos estados nacionais,
dos governos, da política, das forças armadas e dos sistemas de saúde, mas de
todo o conjunto das instituições. De modo particular, pensando na parte que nos
cabe deste latifúndio: desvela também as entranhas da mídia, da academia, da
educação, da tecnologia, do pensamento e das ciências. É numa hora como esta
que se valida ou não todos os estudos, as pesquisas e a produção intelectual.
Afinal, o que sabemos e o que podemos fazer com o que sabemos, para minimizar
os impactos de uma situação tão crítica e letal como esta?