terça-feira, 14 de dezembro de 2010

NOTAS DA CATALUNHA

Os textos abaixo são do meu amigo, Paulo Roberto Barbosa, cartunista, mestre e doutorando em cinema, pela Escola de Belas Artes, UFMG, que está residindo temporariamente na Espanha.

Espanha profunda
"Não me perguntem o que é Espanha Profunda. Trata-se mais de um sentimento do que de um conceito facilmente formulável. Este sentimento surge de vez em quando e quando menos se espera. No metrô, por exemplo. Outro dia, no caminho para a Plaza Catalunha, pintou uma senhora cega cantando uma mistura de flamenco com cantochão árabe. Ela dizia repetidamente “no tengo dinero, no tengo casa, por favor, señor, por favor señora, gracias, señor, gracias, señora, no tengo para comer, etc…” Era um canto horrível, mas tão triste e sentido que muita gente se dispôs a dar-lhe uns vinténs. E alguns ainda olharam em volta para os que não deram esmola, com cara de reprovação. Este súbito vislumbre do que seria a Espanha sem as tintas da modernidade high-tech aplicada a este país há coisa de vinte anos, em face da sua incorporação à Comunidade Européia, está nas ruas, todos os dias. Nos velhinhos de boné e bengala dando comida aos pombos, no mendigo filósofo com suas conversas de alto nível com os transeuntes que têm a paciência de ouvi-lo, nos vendedores de castanhas torradas e batatas doces em ruas de circulação burguesa, na voz rouca e pré-cancerosa das mulheres neuróticas e tabagistas inveteradas, no jamón que os homens cortam com prazer sensual nos restaurantes, nos garçons parecidos com toureiros prestes a gritar Venga!, no sujeito imensamente gordo que passa o dia bebendo uísque e cerveja serenamente, apenas trocando de bar, e até nas crianças, que falam em nota e timbre diferentes, como seres de outro mundo. É nos restaurantes, porém, onde esta Espanha Profunda surge com maior frequência. Ouvi de soslaio um sujeito no balcão contar, orgulhoso, como seu irmão devorava uma paella inteira, sozinho. Um outro camarada contou piada infame, inventada na hora, a uma senhora à espera do café. Disse algo como: “sabe qual é a frase filosófica da batata? La salsa me pone a bailar…”

In vino veritas

"A Catalunha tem misteriosas tradições, como o curioso “caganer” (foto), de origem medieval. Próximo do Natal, os catalães costumam colocar, nos presépios, um boneco de barrete vermelho e calças arriadas, entre a Virgem Maria e o Menino Jesus. É para dar sorte, segundo dizem. O que um sujeito de barrete exercendo suas funções vitais num presépio de Natal tem a ver com sorte, nem Deus saberia explicar. Em rápida visita à simpática cidade de Stiges, fui parar numa certa Granja (leiteria, em castelhano) Candelária, onde pude conhecer um lado menos escatológico, e não menos interessante, das tradições etílico-culinárias catalãs. O bar era especializado em vinhos e comidas típicas (isto é, comidas rápidas de se fazer, com todas as facilidades da cozinha moderna). Na parede externa desta “granja” – onde se vendia de tudo, menos leite –, o dono teve o cuidado de instalar uma série de azulejos coloridos, com ótimos desenhos populares, acompanhados de frases jocosas, à maneira de antigos provérbios. Comprei lápis e papel e anotei alguns desses rifões, de saborosíssima leitura para os aficionados do vinho e do bom prato, conforme se confere a seguir.
Dice el señor Codina, más vale beber mal vino que buena medicina.
Vino de viñas viejas, que bien te tomo, que mal me dejas!

El buen mosto sale al rostro.
Quien bien come y bien bebe solo de viejo se muere.
El vino para los reyes, el agua para los bueyes.
La mujer y el vino sacan al hombre el tino.
El dueño del mundo es el bebedor, porque bebe vino que es lo mejor.
Quien bien come y bien bebe bien hace lo que debe.
Dijo el sabio Salomon que el buen vino alegra el corazón.
Vayan entrando, vayan bebiendo, vayan pagando y vayan saliendo!"

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