O Estado e suas formas contemporâneas de intervenção pública:
anotações acerca do filme “Eu, Daniel Blake”
Roberto Rafael Dias
Dimensionarmos analiticamente as formas contemporâneas de intervenção pública mobilizadas pelo Estado tornou-se uma tarefa bastante difícil. Colocando em ação estratégias que mesclam neoliberalismo e neoconservadorismo, em suas vertentes variadas, as políticas públicas responsabilizam os próprios cidadãos pelos seus êxitos e pelos seus fracassos. A literatura contemporânea, importa destacar, é fértil em diagnósticos acerca deste cenário; todavia, entendemos ainda ser necessário (sobretudo no contexto brasileiro) avançarmos na composição de análises que tomam como ponto de partida a experiência dos atores sociais frente a este deslocamento nas possibilidades de proteção social. Neste breve texto, minha intenção passa por problematizar essa questão, valendo-me de alguns comentários produzidos nas margens do filme “Eu, Daniel Blake”.
O referido filme é uma produção britânica do diretor Ken Loach, premiada no Festival de Cannes com a Palma de Ouro, no ano passado. Nesta narrativa, de acordo com os críticos de cinema que acompanham seu trabalho, Loach volta a tratar de uma temática que tem sido central em seus trabalhos, qual seja: uma defesa das minorias frente aos abusos cometidos pelo Estado. São evidenciados, de forma central no longa-metragem, os procedimentos burocráticos existentes para que o cidadão possa obter os benefícios sociais concedidos pelo governo.
Mesmo que o filme seja ambientado em outro país, não parece difícil sentir-se representado pelas angústias vividas pelo personagem principal do enredo, Daniel Blake, interpretado pelo ator Dave Johns. O personagem, após sofrer um ataque cardíaco, ficou impossibilitado de seguir trabalhando como marceneiro, situação confirmada mediante o recebimento de um laudo médico. Ampliando as dificuldades para conseguir o benefício que era seu direito, Blake possui limitações para circular nos ambientes digitais, o que aumenta o abismo que o separa da inserção no sistema para solicitar tais recursos de proteção social. A narrativa torna-se comovente ao mostrar, de forma sensível, certa arrogância (ou cinismo?) na postura do Estado, que oferece os serviços aos cidadãos; todavia, reforça as barreiras que os impossibilitam de acessá-los.
Após uma série de percalços enfrentados por Blake, de forma bastante politizada, o personagem recebe a oportunidade de ser ouvido por uma junta interdisciplinar que irá julgar o seu recurso, depois de várias negativas referentes ao seu pedido de benefício. Para tal momento, o personagem havia escrito algumas palavras como forma de desabafo sobre as dificuldades enfrentadas no período em que esteve lutando para obter os benefícios. Daniel Blake não chega a ler tais palavras, pois um mal-súbito, minutos antes de entrar na audiência, havia lhe tirado a vida. Em seu funeral, a personagem Katie, após afirmar que “o Estado o levou a uma morte precoce”, lê o pequeno texto de desabafo:
Não sou um cliente, consumidor ou usuário dos serviços. Eu não sou um desistente, um fujão, um mendigo ou um ladrão. Não tenho meu número de serviço social marcado na tela. Pago minhas obrigações, faço meus centavos e tenho orgulho disto. Não me curvo a ninguém, olho meus vizinhos nos olhos e ajudo-os, se puder. Eu não aceito ou procuro caridade. Meu nome é Daniel Blake. Eu sou um homem, não um cão. Portanto, exijo meus direitos. Exijo que me tratem com respeito. Eu, Daniel Blake, sou um cidadão, nem mais e nem menos.
A narrativa deste filme levou-me a considerar dois aspectos referentes às formas de intervenção pública mobilizadas pelo Estado na Contemporaneidade. O primeiro aspecto diz respeito à incapacidade do Estado para atender as demandas coletivas de nossa sociedade, na medida em que poder e política tornam-se cada vez mais distanciados. Em tais condições, marcadas pelo contexto de crise, os atores sociais não mais encontram campos para depositar sua esperança. Advertia-nos o sociólogo Zygmunt Bauman, recentemente falecido, que “a crise é um momento de decidir que procedimento adotar, mas o arsenal de experiências humanas parece não ter nenhuma estratégia confiável para se escolher” (2016, p. 20). Mais que isso, novamente recorrendo a Bauman, as responsabilidades públicas agora são depositadas “sobre os ombros de indivíduos humanos” (p. 19).
Para além da individualização das responsabilidades coletivas, o segundo aspecto que escolhi comentar direciona-se para as relações entre desigualdades e proteção social, ou ainda das possibilidades de colocar em ação uma “política do respeito”. Na obra “Respeito: a formação do caráter em um mundo desigual”, o sociólogo Richard Sennett (2004) problematiza a noção de proteção social, tal como foi desenvolvida no final do século passado. Seu ponto de partida, em linhas gerais, situa-se na perspectiva de que “a sociedade moderna carece de expressões positivas de respeito e reconhecimento pelos outros” (SENNETT, 2004, p. 13). Considerando as relações entre desigualdade e o Estado de Bem-Estar Social, também valorizando suas experiências pessoais, Sennett nos auxilia a pensar sobre a aquisição do respeito próprio, das possibilidades de ser ouvido e reconhecido e de distanciar-se da dependência. Sennett defenderá, nesta obra, a promoção de uma “política do respeito”, centrada na autonomia e nas possibilidades de ampliação de nossas capacidades de valorização dos outros (e de nós mesmos).
Em termos diagnósticos, com o advento das políticas neoliberais e com a redefinição das estratégias interventivas do Estado, encontramos em curso uma intensa individualização das responsabilidades coletivas. O Estado, ao promover novas formas de ação coletiva, distancia-se das demandas subjetivas e das possibilidades de proteção social, conforme nos evidencia a narrativa cinematográfica analisada. Porém, esse diagnóstico não deveria nos paralisar! Uma aposta na política do respeito - centrada na autonomia, no reconhecimento das desigualdades e em novas formas de garantias coletivas – pode se constituir como um importante foco para reflexões acadêmicas, assim como uma permanente pauta de lutas políticas.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt; BORDONI, Carlo. Estado de crise. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
SENNETT, Richard. Respeito: a formação do caráter em um mundo desigual. Rio de Janeiro: Record, 2004.
SILVA, Roberto Rafael Dias da. Sennett & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
(Fonte: Pensar a Educação em Pauta, de 12.05.2017)
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