quarta-feira, 9 de setembro de 2015

NÃO HÁ MAL QUE NÃO TENHA CURA


Uma frente urgente contra a crise




Tarso Genro

Dezenas de iniciativas políticas “por fora” das instâncias partidárias formais, mas com participação de quadros políticos sem partido e de quase todos os partidos de esquerda - registrados ou não na Justiça Eleitoral - tem promovido Fóruns de debates político-programáticos, fórum de instâncias horizontais sobre a  economia do país, seminários de avaliação da conjuntura, bem como debates na academia, insatisfeitos, de um lado, com os rumos econômicos e políticos do Governo Dilma e, de outro,  com a incapacidade dos partidos, no Parlamento, formarem uma base política articulada para resistir ao golpismo “paraguaio” , que quer esvaziar de legitimidade o mandato da Presidenta.  Promover uma mudança nos rumos do “ajuste”, de molde a não permitir que, novamente, os “de baixo” paguem a crise e não permitir que a agenda do Governo seja capturada, integralmente, pela agenda da oposição, tem sido uma constante nestes diálogos extrapartidários.
Sem desdenhar da importância, inclusive estratégica, de todos os demais palcos de debate, ressalto, aqui, a iniciativa de diálogo sobre uma nova Frente política de esquerda, que se faz no Rio de Janeiro, inspirada nos movimentos começados pelo ex-Presidente do PSB, Roberto Amaral; o Fórum Brasil 21, promovido pela Carta Maior, que se dissemina no país; e, especialmente, a organização dos movimentos sociais, em torno do projeto da Frente Brasil Popular, como frente de luta dos movimentos sociais e movimentos sindicais do campo e da cidade, com apoio, também, de dirigentes políticos das mais diversas extrações partidárias e ideológicas.
Recentemente, por iniciativa de parlamentares do PSB, PT, PC do B, Psol, PDT e quadros parlamentares de vários partidos construiu-se, também no Congresso, uma Agenda alternativa à chamada “agenda Levy”, que é, na verdade,  a agenda do Governo Federal. A proposta foi elaborada  com o propósito de buscar uma saída para a crise ”por fora” das medidas ortodoxas, que só tem reflexos orçamentários imediatos, mas não removem os fundamentos da crise. Esta se origina, principalmente, do estrangulamento do mercado interno paralisado pelas profundas desigualdades sociais do país e se completa na política monetária, que alimenta  os custos da intermediação financeira, não somente através das taxas de juros exorbitantes, mas também a partir do hiper-rendimento oferecido aos serviços de intermediação do dinheiro,  em cadeia, como mostrou em trabalho brilhante, recentemente, o economista Ladislau Dowbor. (“O pão nosso de cada dia”, Fundação Perseu Abramo, 2015, 138 pgs.)
A ideia da Frente Brasil Popular tem uma importância especial, neste quadro, pois congrega vários movimentos de base na sociedade, que passam a mover-se em cima de uma agenda de mudanças de fundo, mas imediatas,  e não de apoio “automático” ao governo. E também se organiza em torno da defesa da legitimidade do mandado da Presidenta, contra o golpismo e pela soberania nacional. Esta Frente não coloca, na sua agenda, a questão eleitoral imediata, ou seja, vem “de baixo” para cima, sem pretensões de governo e acumula forças para incidir, no futuro, na composição de uma Frente orgânica - com base popular organizada e  independente -  que refletirá necessariamente no comportamento eleitoral dos partidos políticos democráticos e progressistas, sejam eles socialistas ou não. 
A Frente Brasil Popular é a primeira reação política de massas à imposição dos programas de “austeridade” que o Governo Federal adotou, quando este se rendeu à agenda centro-direitista do grupo FHC-Instituto Millenium-Aécio, que tem ramificações em todos os partidos políticos, inclusive no próprio Partido dos Trabalhadores.
Não de trata de atribuir a  este conglomerado liberal a vocação de que eles pretendem o "mal” do Brasil e querem expandir a fome e a miséria, porque desdenham das necessidades dos pobres. Estas avaliações subjetivistas só servem para tornar mais impreciso o centro da disputa, que é, em termo bem concretos,  o seguinte: dentro do sistema capitalista reinante nos países endividados, como se sai de mais uma crise de acumulação do “rentismo”? Com maior concentração de renda e poder, nas mãos do capital financeiro e das classes e frações de classes, associadas ao “rentismo” e ao alto consumismo? Ou se sai da crise, no mínimo, “socializando” as perdas com os setores mais privilegiados do capitalismo, forjados no modelo de endividamento até agora reinante?
A publicação, no dia 27 de agosto de 2015, no jornal “Valor”, de um estudo sobre a evolução patrimonial dos que estão fora da economia real, mostrou que as fortunas financeiras -no primeiro semestre deste ano-  cresceram 7.7%. Neste mesmo período, o poder aquisitivo dos trabalhadores reduziu, aumentou o desemprego, a indústria estagnou ou decaiu e o Estado viu crescer a dívida pública. As consequências deste processo, na disputa política e na reorganização conservadora do projeto democrático da Constituição de 88, são extremamente graves. De uma parte, faz as classes populares perderem a “fé” na democracia, para defender os seus direitos históricos e, de outra parte, gera um consórcio político conservador para sustentar as medidas “duras” de ajuste, contra os mais pobres, que só são sustentáveis com autoritarismo e repressão.
Quaisquer medidas de “ajuste”, quaisquer que sejam as suas causas, seja num regime capitalista, seja numa economia planejada de caráter “socialista” ou “social-democrata”, instituem uma repartição de perdas e de ganhos, para economia voltar a funcionar, segundo a previsão dos estrategistas econômicos do poder. Assim foi quando na URSS o Estado se preparou para enfrentar a Segunda Guerra, quando Roosevelt combateu a crise de 29, quando as sociais-democracias europeias se reorganizaram na devastação do pós-guerra, quando a China reestruturou a economia depois das destruições nada criativas da Revolução Cultural. Atualmente, estamos no longo curso da roubalheira legalizada do “sub-prime”, cujas perdas do capital financeiro estão sendo transferidas para as contas dos países endividados, através da extorsão dos juros manipulados, cujos níveis inclusive somos impedidos de sequer avaliar, pois isso é tarefa da tecnocracia do Banco Central.
Penso que estes amplos movimentos de discussão programática e de avaliação da crise, que hoje estão sendo organizados no país, deveriam se unir para, numa ampla mesa política,  concertar e oferecer aos partidos do campo democrático uma agenda mínima, para tirar  o país da ameaça recessiva e do desemprego. A recessão e o desemprego, mais do que corroer a estabilidade do Governo Dilma, que já está comprometida, pode promover a omissão destes setores populares na luta pela preservação dos valores da democracia política, já abalados pela campanha de intolerância e sectarismo, promovida pela pela grande mídia, que já estimula  minorias fascistas a desafiarem os direitos democráticos do povo, duramente conquistados nos últimos vinte anos. 
O duplo movimento, de criminalização da política e de politização da criminalidade - onde marginalidade e fascismo realizam articulações de  aproximação e repulsa - pode comprometer, não só a construção de uma ética republicana, mas também a manutenção dos valores necessários ao convívio entre os diversos. Quando as decisões políticas de Estado começarem a passar, predominantemente, pelas expectativas em torno das ações do Ministério Público e  do Poder Judiciário, o poder político se realizará não pelas mãos de um  Juiz bem intencionado (ou mal intencionado), mas por eleitos da direita midiática, que serão apresentados como salvadores da pátria. Assim foi com Berlusconi.
O ataque direto aos custos da intermediação financeira que retiram de circulação dezenas de bilhões de reais em cada ano fiscal, um imposto ou contribuição de transição tirado dos lucros financeiros para dar sustentação ao próximo Orçamento, um CPMF datado pelo menos para o próximo OGU, a redução das alíquotas do Imposto de Renda das camadas médias e dos assalariados em geral para aumentar imediatamente o seu nível de consumo e, no plano político, um acordo para aprovar, na Câmara, o projeto do Senado que proibiu o financiamento empresarial das campanhas, são algumas das medidas que podem servir de referência para colocar a esquerda plural no centro de uma saída  emergencial para a crise. Já que o Governo parece estar amarrado num acordo de governabilidade, que é extremamente precário, e não pretende se mover  fora da chamada agenda Levy, que as propostas venham de fora, em defesa - pelos menos - se não forem aplicadas agora, de uma  agenda futura, de unidade mínima de quem não se conforma que o caminho é único.
O conjunto de iniciativas no campo da esquerda e dos setores progressistas da sociedade, em busca de saídas para a crise, pode gerar um amplo movimento frentista para reestruturar o conceito de “coalizão”, até agora reinante. Neste modelo, os Governos formam sua base de governabilidade no Parlamento, adaptando o seu programa aos níveis de cooptação possíveis para formar maiorias. É um vício do sistema político atual, que tende a desmoralizar a República. Num novo modelo - para o país avançar distribuindo renda e com mais  democracia e soberania - o Programa deve compor a governabilidade de forma antecipada, comprometendo uma maioria parlamentar e social com um determinado conteúdo e não com uma “forma” fragmentária  de repartição do poder para organizar o Governo. 
(Fonte: Site Carta Maior)

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