(Nota de 1 Dólar – Foto:
Eugênio Magno)
Bacurau e Coringa, duas faces de uma
mesma moeda
Eugênio Magno
Bacurau e Coringa, duas
recentes produções cinematográficas do continente americano – do sul e do norte,
respectivamente –, vêm sendo analisadas dos pontos de vista fílmico, político,
filosófico, sociológico, psicanalítico, etc. Sem pretensão quanto a fazer
reflexões sobre qualquer um dos filmes que se enquadre nesta ou naquela
categoria analítica, nem tampouco traçar um panorama geral comparado, atento-me
aqui para possíveis aproximações entre eles e a nossa realidade. Tais
aproximações são apresentadas pelas assimetrias no tempo e no espaço, como
também pelo que encerram suas narrativas e caracterizam seus personagens que se
fazem presentes e coincidentes com a atual conjuntura econômica e sociocultural
dos países em que as duas histórias acontecem e/ou em quaisquer outras
localidades do mundo.
O filme dirigido pela dupla de
cineastas Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles se passa no minúsculo
povoado de Bacurau que dá nome ao filme, situado no oeste do estado de
Pernambuco, nordeste brasileiro. Já o antagonista do Batman, Coringa,
protagonista da película de Todd Phillips, que também intitula o filme, é um
personagem de Gotham City (Nova York), o centro do império capitalista, a
metrópole mais cosmopolita do mundo. Embora Coringa seja projetado para um
passado não muito distante e Bacurau para um futuro próximo, as duas películas
se encontram no presente, na atualidade. Tanto Bacurau quanto Gotham City ou
Nova York podem muito bem representar vários locais em qualquer país do globo.
Os bolsões de pobreza e miséria social, fome e desemprego se multiplicam pelos
quatro cantos do planeta, enquanto uma minoria de endinheirados aumenta em
percentuais gigantescos seus lucros, bens, poder e capital. No campo, vilas e cidades
– médias e grandes –, portanto, em micro e macro territórios, o descarte humano
tornou-se prática corriqueira. Até mesmo uns poucos assistidos pelos programas
sociais de natureza compensatória sofrem o engodo da inclusão subalterna,
viciada e selvagem que maquia a realidade, enquanto aprofunda as desigualdades
e escamoteia privilégios de forma abjeta. Coringa e Bacurau expõem as vísceras
da sociedade capitalista e do avanço impiedoso do neoliberalismo ao retratar a
diversidade e as diferenças e divergências cada vez mais tensionadas pelas
muitas formas de desigualdades, principalmente as econômico-financeiras,
sociais e de direitos (incluindo a falta do direito a ter direitos).
Os dois abordam a forma
bárbara como os mais pobres são oprimidos, roubados de suas humanidades e
massacrados pelos tentáculos visíveis da encarniçada glutonia do capital. As
promessas da modernidade e da revolução tecnológica e cibernética não se
cumpriram e a mundialização capitalista globalizou a miséria e
transnacionalizou a degradação do ambiente, de nossas reservas, mananciais e de
toda a vida no planeta. Mas como diria Fernando Birri, para citar o pai do nuevo cine latinoamericano, “a vida quer
viver” e os oprimidos, excluídos e invisibilizados sempre encontram formas de
sobrevivência, lutam e, como as árvores, ainda que sucumbam, morrem de pé. As duas
narrativas fílmicas nos mostram do que os mais fragilizados são capazes quando
perdem a esperança no tal “futuro melhor”, sempre prometido e, recorrentemente adiado.
A urgência da vida faz com que os sujeitos coletivos de Bacurau, um lugarejo na
periferia do mundo que, vistos como desumanizados pelo olhar do colonizador, tendo
suas pacatas vidas dizimadas, ao serem caçados e mortos como animais (num jogo
de “entretenimento” de estrangeiros brancos) recorram a um banido de sua
comunidade para lhes fazer justiça. Em Coringa, um homem sofrido que ganha a
vida como palhaço propagandista, marcado pela tristeza, depressão e um grande
drama existencial e familiar, reage de forma independente e individual contra o
establishment. Sua atitude mobiliza a
massa nova-iorquina que assume a máscara de palhaço coletivo e desencadeia um
intenso movimento de insurgência contra o sistema que os esmaga em suas
humanidades.
O temido criminoso, Lunga e
seus comparsas, assumem a condição de vingadores na defesa de seus conterrâneos
de Bacurau. E o aparentemente inofensivo palhaço, Arthur Fleck, de Joker,
enfurecido por ter sua existência e dignidade negadas se rebela e faz despertar
uma cidade inteira contra um sistema excludente e perverso em que os
privilégios de poucos são garantidos à custa do sacrifício da grande maioria da
população. A novidade nos dois filmes é a explosão de violência vingativa dos
mais fracos e dos que sempre foram apresentados como vilões a serem combatidos
violentamente pelos heróis justiceiros, numa total inversão de empatia do
espectador que passa a vestir a pele do vingador. É exatamente aí que mora o
perigo que nos espreita. Há muito temos recebido sinais de como e para quais
fronteiras as novas convulsões sociais têm evoluído. Se as elites, o capital, o
Estado, a sociedade organizada e os guardiões da moral e dos bons costumes criminalizam
a selvageria da vingança há que se repudiar também de forma veemente a
brutalidade e a barbárie imposta aos desvalidos, à força de uma justiça socialmente
parcial e seletiva.
Jocker, o palhaço triste que
sorri por força de um distúrbio psicológico, sem a menor pretensão de articular
qualquer movimento social, vira contra seu inimigo a arma que lhe é apontada.
Ele dispara contra os verdadeiros vilões que pousam de heróis e roubam a vida
dos oprimidos que, ao assumirem a máscara dos palhaços de que são feitos
cotidianamente, criam o caos no coração do mundo capitalista – Nova York –,
outrora jurisdição do super-herói de preto, Batman, o justiceiro e cão de
guarda dos interesses das classes dominantes.
Enquanto a população de
Bacurau é plugada e a tecnologia digital desfila pelo filme tanto contra como a
favor dos interesses coletivos, em Coringa nos é apresentada uma Nova York suja
e decadente. O metrô, a TV e as ruas são os principais cenários das ações de
Arthur Fleck que necessita de alta exposição midiática para ferir com a mesma
arma com que é ferido. Já aqui, nas brenhas do sertão, a selvageria é praticada
com requintes cibernéticos, como a invisibilização territorial feita pelos
gringos, que retira o lugarejo do Google Maps, para a livre ação brutal dos
ditos civilizados contra os “selvagens”, moradores de Bacurau. Os oponentes no
filme brasileiro se enfrentam com armas de alto calibre e longo alcance, de
última geração, coletivamente, ao contrário de Joker que, sem o uso de qualquer
parafernália tecnológica, com apenas um velho revólver de cano curto, num ato
solitário, extermina à queima roupa seus opressores e deflagra uma manifestação
de massa. Lunga, o bandido alijado de Bacurau é convocado pela população para
defender a comunidade da barbárie e com extrema violência lhes devolver a paz.
Guardados os limites da
conceituação, Coringa e Bacurau revelam outros deflagradores dos movimentos
sociais da atualidade que obedecendo a uma dinâmica que lhe é própria, não se
prende no tempo, nem a conceitos monolíticos. Toma novas feições e incorpora
bandeiras de luta contra as ações mais danosas ao convívio humano na produção
da vida e nas relações sociais praticadas em cada momento histórico. O
insucesso de uma possível transformação social negociada com base na relação
capital/trabalho e divisão de renda, de forma justa e organizada com o
protagonismo do proletariado, sindicatos e partidos políticos gestou uma grande
diversidade de coletivos e formas peculiares das pessoas se juntarem para lutar
contra a opressão, uma delas é o terror e o revide da violência. Já disseram
que se a revolução social não viesse da classe trabalhadora organizada, viria
das periferias, dos excluídos e marginalizados, de forma desorganizada e
brutal.
Bacurau e Coringa são dois
filmes proféticos, denunciam e anunciam o leviatã da hipermodernidade. Coringa
homenageia uma plêiade de super-heróis da ficção e Bacurau faz memória a vários
mártires da história recente de nosso país. Qualquer semelhança com pessoas e
fatos da atualidade, certamente não terá sido mera coincidência.
Este texto também foi publicado no jornal Pensar a Educação em Pauta.
Excelente!
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