Em vez de desperdício, um reino de abundância
Ricardo Abramovay*
Um mundo de abundância, em que a concepção criativa e o uso adequado dos produtos representam o caminho para superar as fronteiras em que o desenvolvimento sustentável está hoje enclausurado. Um mundo em que cidades funcionam como florestas, recuperando o que é comumente tratado como lixo, em que a melhor energia é a que vem do sol, do vento, e onde as emissões fósseis ainda remanescentes convertem-se em alimentos para nutrientes biológicos e não em aquecimento global. Uma economia que não se restringe a reduzir danos, a fazer menos mal, mas tem como objetivo central regenerar os ecossistemas degradados e, por aí, oferecer novas fontes de dinamismo às sociedades humanas, cultivando aquilo que Emerson, o precursor americano do ambientalismo contemporâneo, chamava de profusão calculada. Em suma, um mundo em que a matéria, a energia e os recursos bióticos dos quais dependemos não respondem a uma lógica linear (extrair-produzir-usar-jogar), nem mesmo a uma lógica circular de ciclo fechado, mas a um movimento em espiral em que a atividade econômica resulta num conjunto de nutrientes técnicos e biológicos para a produção de novos bens e serviços.
O arquiteto americano William McDonough e o químico alemão Michael Braungart tornaram-se ícones do movimento socioambiental global por uma expressão célebre, que dá título a seu primeiro livro, publicado em 2002. "Do Berço ao Berço - Refazer o Modo como Fazemos as Coisas" ("Cradle to Cradle - Remaking the Way We Make Things"). O conceito é usado por oposição à rota convencional, que vai do berço à sepultura e que as políticas de resíduos sólidos, em todo o mundo, tentam superar. Só que, para fazê-lo, a trajetória não pode mais limitar-se à famosa tríade: reduzir, reusar, reciclar. É muito mais promissor o horizonte de redesenhar, renovar e regenerar.
A reciclagem, por exemplo, de garrafas PET para a fabricação de tecidos apoia-se, quase sempre, no emprego de materiais químicos tão poluentes que só podem, uma vez descartados, destinar-se aos aterros ou à incineração. Essa reciclagem corresponde, na verdade, a uma espécie de subciclagem ("downcycling"). O desafio é, ao contrário, inserir materiais e energia num ciclo que permita sua revalorização, e não a degradação. O mais complicado, quando se trata dessa revalorização, são os produtos complexos, como automóveis, telefones celulares, computadores ou lâmpadas fluorescentes: empregam imensa quantidade de recursos minerais, ligas metálicas e compostos químicos, cuja separação torna-se muitas vezes impossível. Esse desperdício de recursos deve ser enfrentado não quando o produto é descartado e sim quando é concebido.
Quem oferece bens e serviços não pode limitar-se a saber se "alguém quer ou alguém vai comprar". A pergunta central é: e depois? O que será feito dos componentes biológicos e técnicos dos produtos, uma vez consumidos? Vão entupir os aterros, alimentar os caríssimos incineradores, ou poderão ser a base para novos processos produtivos, propiciando, assim, menos exploração mineral e solos nutridos por elementos que até então iam para o lixo?
A responsabilidade pós-consumo, a logística reversa (estratégicas, por exemplo, na Política Nacional de Resíduos Sólidos, aprovada no Brasil em 2010) só podem ir além da remediação efêmera se forem pensadas no design do produto, não como forma de atenuar seus danos. A expressão "what's next" forma a espinha dorsal do "Upcycle". Ir além da sustentabilidade, como propõe o subtítulo do livro, significa imaginar e propor bens e serviços sempre a partir do princípio de que suas partes integrantes nada mais são que ingredientes para novos bens e produtos capazes de, por sua vez, fecundar a biosfera (e o que os autores chamam de tecnosfera) com elementos destinados a enriquecê-la.
Não se trata de ignorar as leis da termodinâmica, nem, é claro, de suprimir a entropia inerente ao uso de energia e materiais por parte das sociedades humanas. Mas o grau de desperdício atual é tanto e tão generalizado que abre um espaço extraordinariamente grande para esse reino da abundância. Aí a contribuição de McDonough e Braungarté decisiva: a abundância a que se referem não corresponde a celebrar simplesmente a minimização dos danos, como se faz, na maior parte dos relatórios socioambientais do mundo corporativo atual. Ao contrário, é necessário transformar radicalmente não só a maneira como são produzidos os bens e serviços, mas, sobretudo, seu próprio sentido social.
Por isso, o ponto de partida dos tomadores de decisão sobre os recursos de que dispõem não pode estar nas métricas a respeito de seus impactos. O começo de tudo são valores, ou seja, o que se quer com aquilo que é oferecido à vida social. Dos valores nascem princípios, daí resultam objetivos, estratégias, táticas e somente então é que as métricas têm lugar. Reduzir emissões, melhorar o uso da energia ou poluir menos não servem como parâmetro para julgar a maneira como se comportam os agentes econômicos. Mais importante é o que os autores chamam de intencionalidade, que se exprime justamente na capacidade de imaginar e realizar produtos, obras, edificações, estradas, plantações e cidades não apenas por suas oportunidades de ganho econômico, mas mas pelo conjunto de seu ciclo de vida e pelos benefícios que ao longo do tempo vão produzir para a vida social, para os ecossistemas e, em função disso, para as empresas.
Não podemos continuar na roleta russa de introduzir componentes químicos e materiais desconhecidos na biosfera, para depois tentar reduzir seus efeitos perniciosos. Temos que reconstruir a saúde dos solos e isso não se consegue com mais agrotóxicos, associados a sementes melhoradas. "Upcycle" oferece fundamentos técnicos persuasivos a essas afirmações e sua mensagem chega hoje a algumas das mais importantes corporações (Philips, Ford, Puma, Walmart, Steelcase, entre outras) e aos governos de municipalidades da importância de Chicago e Pequim, por meio de "Cradle to Cradle" (C2C), que se tornou uma certificação global.
* Professor titular do departamento de economia da FEA/USP
e coordenador do Núcleo de Economia Socioambiental (NESA)
(Fonte: Site do IHU: Instituto Humanitas Unisinos)
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