sábado, 20 de janeiro de 2024

CHOQUE ELÉTRICO

A Cemig “compra” dos pobres, a preço irrisório, a energia que revende a todos, a peso de ouro. 


(Capas de Folders da Cemig distribuídos na reunião)

Transferência de Energia: de pobres Para ricos



Eugênio Magno*

Ao participar recentemente de uma reunião da Cemig com a Comunidade Quilombola de Pinhões, no município de Santa Luzia, Minas Gerais, foi possível testemunhar o lado obscuro das chamadas políticas sociais praticadas pelas grandes empresas.

O projeto Cemig nas Comunidades, incrementado em 2019 e anunciado com pompa e circunstância pela empresa, embora bem embalado, não consegue esconder seu lado perverso. É evidente que a jogada, uma espécie de Robim Hood às avessas, toma dos pobres para entregar aos ricos e vender novamente aos pobres a mercadoria reciclada, a terceira linha do produto. É a lógica de reprodução das desigualdades da forma mais matreira possível.

O staff mobilizado pela empresa para essa reunião, foi enorme. No início, havia mais representantes da empresa do que da própria comunidade. Ao final da reunião a empresa, inclusive, formou maioria porque grande parte dos integrantes da comunidade deixaram a quadra onde aconteceu o encontro por não suportarem a desfaçatez com que os tais programas e “benefícios” eram apresentados.

A malfadada reunião, depois de breve saudação de uma representante da comunidade, foi seguida pela apresentação pessoal de algo em torno de uma dúzia de funcionários e terceirizados da Cemig. Os trabalhos foram iniciados por uma agente do projeto com o tradicional “Bom dia”. Como o cumprimento foi respondido pela comunidade de forma quase monocórdica, a palestrante fez aquela tradicional provocação de animadores de auditório: “como é mesmo que se fala, pessoal? – Booom diiia!!!”, na expectativa de uma repetição efusiva da sua mesura, o que não ocorreu.

Numa atitude típica de quem lida com incautos a “animadora” discorreu sobre a necessidade de todos fazerem a sua parte para economizar energia. Usou daquele discurso que conhecemos e concordamos até o ponto em que a economia de eletricidade seja bom para o bolso do consumidor, para o bem do planeta e não para precarizar a vida da população, privatizar estatais e encher as burras de uma minoria de abastados exploradores do povo e das riquezas naturais do país. A coisa foi se tornando insuportável à medida que a didática da agente foi se encaminhando para seu verdadeiro propósito, uma pedagogia prescritiva e autoritária. Não faltaram recomendações de não deixar luzes acesas, tomar menos banho (claro que me lembrei do ex-presidente da república, rifado nas últimas eleições). A palestrante empolgou e falou que tomássemos cuidado com o ferro elétrico, com esse negócio de passar roupa e receitou: “a moda agora é andar amassadinho”. Depois veio a história de trocar lâmpadas tradicionais por lâmpadas de led, para economizar na conta de luz. O discurso é conhecido: “a Cemig vai trocar essas lâmpadas fluorescentes e incandescentes por lâmpadas de led, sem custos – até sete lâmpadas por residência. Boquilha sem lâmpada não tem direito a reposição e a lâmpada antiga será levada para ser reciclada”.

Realmente a substituição das lâmpadas e as orientações para sermos parcimoniosos na utilização da energia faz sentido, gera economia. Mas essa é só a metade da história. A outra metade é que a economia vai para o chamado mercado livre de energia e para os acionistas. Com a economia de energia contabilizada, a empresa passará a fornecer uma menor carga energética a essas microrregiões, e continuará entregando energia de péssima qualidade com manutenção deficitária nas localidades periféricas, para com isso garantir às indústrias, ao agronegócio e aos bairros nobres um fornecimento energético de excelência.

Embora nunca tenha me prestado a serviços comunicacionais de natureza tão vil, senti uma pontinha de constrangimento ao ver o produto final de um trabalho de comunicação e relações públicas, diga-se de passagem, muito bem elaborado, “comprado” pelo pessoal da casa como verdade absoluta e “vendido” para a população sob a aura de bênçãos do alto, com o beneplácito da diretoria da associação que representa a comunidade. E essa é a pior parte. Das megaempresas e do capital, nada podemos esperar. No entanto, passividade e até mesmo leniência dos nossos pares com seus usurpadores traz muita indignação.

Já é a segunda vez que a empresa visita a comunidade com o mesmo propósito: fazer catequese sobre economia de energia, incentivar a troca de lâmpadas e o cadastro para a tarifa social. Acontece que a comunidade tem muitas outras demandas, mais graves e urgentes. A microrregião sofre com variações constantes de tensão na rede e picos de energia diários, independentemente das condições climáticas. Quando ocorre qualquer pane residencial ou acidente na rede elétrica pública, a manutenção é extremamente morosa, pois falta logística. Segundo os trabalhadores – terceirizados (vale frisar) –, a base do plantão fica em outra cidade, cuja localização é diametralmente oposta a Santa Luzia. Se tudo isso não bastasse, pelo menos duas vezes por mês falta energia por cinco, seis horas seguidas. Ao longo do ano acontecem muitas interrupções prolongadas de energia. Algumas duram até 24 horas. E energia é a base de tudo. Se falta energia, falta luz, falta água; fica-se sem telefone e internet. Sem contar que queima equipamentos, estraga alimentos e impede os moradores de trabalhar. Além dos inúmeros transtornos, a baixa qualidade da energia fornecida causa também grandes prejuízos financeiros que nunca são ressarcidos.

Será essa é a Eficiência Energética que a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), órgão criado com a finalidade de regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia, quer para o Brasil?

O livro “Power Play”, que trata da luta pelo controle da eletricidade do mundo, da ambientalista australiana, Sharon Beder, denuncia o jogo orquestrado pelas companhias de eletricidade em todo o mundo, inundando escolas e comunidades com livros didáticos e presentinhos para conquistar simpatia. A obra de Beder é uma referência para quem deseja aprofundar e compreender melhor essa questão.

E por falar em livro, o coordenador do projeto da Cemig na região carregava debaixo do braço um livro grosso durante toda a reunião. Disse que o livro contava a história dessa e de outras comunidades, bairros, aglomerados e favelas de Minas Gerais. Pelo que entrevi era um livro grande (pelo menos 21 X 30 cm), de capa dura, colorido, e o miolo parecia ser de papel couché. Ora, a Cemig não é editora, nem instituição de ensino. Então, qual é o verdadeiro interesse da companhia em contar histórias de comunidades? Não sei que fim teve o bendito livro: se foi dado de presente a quem estendeu o tapete vermelho para a empresa ou se voltaram com ele para exibi-lo em outras pregações.

A estratégia dessas grandes organizações é pavimentar a estrada para retirar o controle da eletricidade das mãos do Estado e submeter a população ao vale tudo do mercado e aos interesses meramente lucrativos dos acionistas, jogadores profissionais, sempre à caça do mais novo cassino para fazer suas apostas. E a ironia é que no Brasil privatiza-se empresas estatais para grupos que em seus países de origem são controlados por governos, ou seja, são estatais. Veja o caso da Enel. Basta entrar no Google e digitar: <enel é uma empresa>... que vai aparecer lá pra você: “A Enel é uma empresa com parte do controle estatal. Seu maior acionista é o Ministério de Economia e Finança da Itália. É a maior empresa da Europa em valor de mercado e está presente em 35 países. Seu faturamento em todo o ano passado foi de € 74,6 bilhões”, o equivalente a 399,8 bilhões de reais.

No território brasileiro, a tal da Enel Brasil, que de brasileira não tem nada, já domina os mercados de energia dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará.

Em Minas Gerais o governador, Romeu Zema, quer seguir a mesma trilha de outros estados e privatizar de vez a Cemig, ainda com 51% de ações do Estado, mas que apesar do controle acionário estatal vem operando como se fosse empresa privada.

Vamos colocar as barbas de molho. Se perdermos o controle acionário, o que já é ruim pode ficar muito pior. Será o caos, como o que a Enel deixou acontecer recentemente em São Paulo. A maior cidade do país e uma das maiores do mundo ficou no escuro e sem energia por quase três dias.

É bom lembrar que, antes da Cemig, quem fornecia energia em Minas Gerais eram empresas privadas. Foi Juscelino Kubitschek de Oliveira, quando governador do nosso estado quem criou a Cemig, em 1952, denominada em seu nascimento de Centrais Elétricas de Minas Gerais. Os primeiros trâmites para sua viabilização foram realizados pelo seu Secretário de Viação e Obras Públicas, José Esteves Rodrigues.

Conheci José Esteves de perto. Era casado com a minha prima, Ana (Nenzinha) Lopes Esteves. Imagino que ele deve estar se revirando em seu túmulo, como certamente revira também JK, juntamente com a primeira diretoria da Cemig, Lucas Lopes, Pedro Laborne Tavares, John Reginald Cotrim, Mario Penna Bhering e Mauro Thibau, por conta do desmantelo que fazem dessa empresa que tanto orgulho deu aos mineiros.

 * Eugênio Magno é Jornalista e Radialista Profissional. Doutor em Educação. Autor de vários textos publicados em livros, jornais, revistas e portais. Assessor do Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara (CEFEP-DF). Produtor e apresentador do podcast Mediações e Editor deste blog. 


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