segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

QUEM VIVER VERÁ: A REAÇÃO DOS OCIOSOS

A Escola de Atenas 
(Rafael Sanzio)

O ócio compulsório 

Eugênio Magno 

         Não vou fazer nenhum trocadilho infame com o título do livro O Ócio Criativo, do especialista em sociologia do trabalho, o italiano Domenico De Masi. Mas vou falar um pouco sobre o ócio compulsório em que fomos submetidos. Trata-se de uma constatação do estado das coisas no mundo do trabalho e os desdobramentos disso em todo o globo e, especialmente, em nosso país.

            Até por volta dos anos 1980 quando sociólogos, pensadores e futurólogos anunciavam o porvir, nos acenavam para uma era em que os trabalhos repetitivos e maçantes seriam desempenhados pela máquina. Líamos e ouvíamos, com entusiasmo, que os trabalhadores teriam mais tempo para dedicar à família, aos esportes, à arte a um hobby, ao lazer. Enfim a cultivar o ócio, tão caro aos gregos na antiguidade. Só não profetizaram que todas essas “bençãos” da era tecnológica, viriam acompanhadas de desemprego e, consequentemente, falta de dinheiro, renda e de uma diminuição substancial do poder de compra. Com o aumento das horas ociosas e da oferta de lazer inacessível, o que era antes chamada classe trabalhadora, são agora os novos pacientes de psicólogos e psiquiatras e a clientela cativa da indústria farmacêutica. Vítimas da depressão, da psicose, do pânico, do alcoolismo, da obesidade, do sedentarismo e de várias compulsões, têm no cloridrato de fluoxetina, no Rivotril, nos ansiolíticos, em uma gama enorme de tarjas pretas e no álcool (para falar apenas de algumas das drogas legalizadas), o seu consolo. Isso para os que ainda dispõem de algum recurso e encontram o apoio da família e a solidariedade dos amigos. Outros – a grande maioria – têm pior sorte. Entram no crack e no tiner, quando não se precipitam dos edifícios ou utilizam de outros expedientes letais, para dar cabo ao pesadelo que veio na garupa dos novos tempos.

O que era trombeteado como futuro se tornou presente rapidamente e habita entre nós. A máquina do tempo foi turbinada e o futuro chegou como aquelas visitas que, embora anunciadas, chegam adiantadas. Sem que haja tempo para reabastecer a despensa, arrumar a casa, encomendar os quitutes, preparar o quarto de hóspedes... Hóspedes não, porque o futuro-presente não é turista, é um novo morador. Ele veio para ficar e, por incrível que pareça é bem vindo. Seus arautos é que nos enganaram com promessas fakes. Parte da bagagem e da entourage desse novo morador é que constituem obstáculos e incômodos, são personas non gratas.

Centros do poder político mundial, teleguiados por uma extrema-direita pouco lustrada, formada por neoliberais, adeptos do rentismo, deram vazão a uma onda negacionista, autoritária, inflada de ódio, ressentimento e intolerância desarrazoada, contra a qual temos que bradar e resistir – à força, se necessário for –, para que o desmanche civilizacional não seja completo. Muito mais do que triste é revoltante e repugnante testemunhar, ainda que em combate, a perda de princípios iluministas e de outras tantas e importantes conquistas científicas, tecnológicas, sociais e de um humanismo ético e cidadão, ancorado em valores democráticos e republicanos ainda tão tenros e carentes de aperfeiçoamentos. Nosso presente e o futuro próximo estão muito comprometidos por essas forças retrógradas que acabaram encontrando eco onde não se esperava.

As elites atrasadas, apoiadas por uma classe média ascendente iletrada, mal informada e deformada por uma educação de baixíssima qualidade e uma licenciosidade artístico-cultural aviltante, resultado de populismos de todos os matizes, dos excessos identitaristas e dos modismos da hegemonia digital, impôs uma agenda tresloucada, de ponta-cabeça. Os capitães do mato contemporâneos são os workaholics que ocupam todos os turnos de todos os postos de trabalho. Têm ao alcance de suas mãos, telas e comandos poderozíssimos, mas atuam como robôs. Não possuem nenhum conhecimento das humanidades, não pensam, foram e são pensados, mentorados por coaches e influencers e, com o mesmo automatismo que acionam botões que movimentam a máquina contra seus pares, são acionados pelos detentores dos meios de produção cibernéticos e do capital.

Não nos enganemos, a humanidade está dividida entre uma faixa mínima (não chega a cinco por cento) da população mundial que controla a vida e a riqueza no planeta, uns poucos que trabalham muito e ganham altos salários para fazer a roda girar, um grupo de trabalhadores precarizados que fazem os serviços subalternos essenciais, uma fração populacional dividida entre trabalhadores especializados e intelectuais que estão sendo descartados, contraditoriamente, em razão de suas competências e qualificações e mais outro tanto de invisibilizados que, apesar de ser maioria, não aparecem mais nem como números, estão sendo substituídos pelos que estão vendendo até suas horas de sono e não mais se solidarizam com os seus iguais, pois já perderam até mesmo o amor próprio.

            Aqui estamos, diante do futuro, esse presente que ganhamos desembrulhado, como um contêiner de suprimentos lançado do alto e que se abriu. Não houve o ritual de entrega: a leitura do cartão, o desatar dos laços da fita, o desenrolar do embrulho e a cerimoniosa abertura da caixa. Ele, esse futuro, também não veio com manual de instruções. A expectativa era muito grande e a surpresa foi além da conta. A entrega foi muito rápida e maior do que a encomenda.

O que fazer... (?).

            Haja criatividade para tanto ócio. Certamente não vamos sucumbir diante dessa situação-limite. Afinal, podemos e devemos usar o ócio para aprofundar o conhecimento de nós mesmos – forças e fraquezas –, nos aprimorarmos. Fazer um diagnóstico preciso do presente e uma análise conjuntural objetiva da realidade, nos organizar mais e melhor para, dentre outras ações vitais, recuperar nossas posições usurpadas pela impostura dos que sempre estiveram ocupados demais para pensar e agir de forma inteligente e consciente.


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